É muito difícil descrever para uma pessoa que não viveu uma determinada época, período que você viveu, curtiu, e que foi importante em sua vida, o que aquela época representou, de forma genérica e no plano abstrato. Tenho muitos amigos no Facebook, por exemplo, que nasceram dos anos 1970 para frente (entre eles, a minha mulher). Ainda hoje estava tentando explicar para a Paloma o que os anos 1960 significaram para mim. Não é fácil. A começar pela delimitação do período que chamamos “anos 1960” ou “década de 60”.
Muitos historiadores definem o início do século 20, não em 1901, como seria de esperar, muito menos em 1900, ano que ainda pertenceu ao século 19, mas, sim, em 1914, quando começou a Primeira Guerra Mundial. Nesse ano de 1914 o mundo descobriu que o otimismo, e a crença no progresso inevitável, que caracterizavam o século 19, não passavam de mitos. Segundo esses historiadores, tendo começado em 1914, o século 20 terminou, não, em 31.12.2000, como seria de esperar (que também seria o dia do fim do segundo milênio, que a maioria das pessoas comemorou, erroneamente, em 31.12.1999), mas no ano de 1989, especificamente no dia 9.11.1989. Nessa data foi derrubado o Muro de Berlin, e esse fato representaria o fim do Comunismo no Leste Europeu, e o fim da Guerra Fria, entre a União Soviética e os Estados Unidos. Se não 9.11.1989, então 25.11.1991, quando o Comunismo deixou de existir na própria União Soviética — a bandeira soviética tendo sido hasteada pela última vez no Kremlin nesse dia. Seja a data 9.11.1989 ou 25.11.1991, ela representa, não só o fim do século 20, mas também o fim da chamada Guerra Fria. Uma dessas duas datas representa, dentro dessa visão, o ano em que a Segunda Guerra Mundial efetivamente terminou, com a derrota de um dos aliados, que esteve entre os vencedores, em 1945, a União Soviética, diante de um outro, os Estados Unidos, secundados pelo Reino Unido.
Quanto à Década de 60, eu, em um enfoque muito pessoal, a considero iniciada em 2.1.1959 e terminada apenas em 8.8.1972. A primeira data representa o dia em que comecei a trabalhar fora, em um banco, aos 15 anos de idade. A segunda data representa o dia em que eu terminei o Doutorado e, logo em seguida (1.9.1972), comecei a trabalhar numa universidade nos Estados Unidos. A minha Década de 60 particular tem, portanto, treze anos e 9 meses, por aí.
Por que esses anos, de 1959 a 1972, foram importantes para mim?
Em 1959 eu, além de começar a trabalhar, no início do ano, concluí, no final do ano o meu Curso Ginasial (Fundamental II, hoje)). No ano seguinte, o de 1960, tentei fazer o Curso Colegial Científico (Ensino Médio para quem pretendia fazer carreira na área científica ou nas engenharias). Detestei. Poucos dias de aula foram suficientes para me dar a convicção de que aquilo não era para mim, e eu não era para aquilo, Não durei no curso nem mesmo até o fim do primeiro semestre: abandonei o curso durante o primeiro semestre. No ano seguinte, o de 1961, comecei a fazer o Curso Colegial Clássico (Ensino Médio para quem pretendia fazer carreira na área das Humanidades, Letras, ou Ciências Humanas). Fiz o Ensino Médio inteiro, de 1961 a 1963, em colégio interno, o Instituto José Manuel da Conceição, de Jandira, SP, fechado em 1970, mas que marcou tanto os seus ex-alunos que até hoje nos reunimos. Em 1964 fui fazer o curso superior no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas. Tudo prometia ser bom, mas veio a Intervenção Miltar no país, que desencadeou uma Virada Autoritária dentro da igreja. A Intervenção Militar no país virou uma Ditadura no final de 1968, com o Ato Institucional (AI) número 5, e a coisa complicou — mas então eu já estava fora do Brasil. Isso porque o AI-5 da Igreja Presbiteriana do Brasil aconteceu antes, em meados do ano de 1966! Fiquei no Seminário de Fevereiro de 1964 até Agosto de 1966, quando fui expulso da escola junto com 35 outros colegas. Fui trabalhar na Robert Bosch do Brasil, em Campinas. Fiquei na Bosch menos de um ano. Em Fevereiro de 1967 fui para o Rio Grande do Sul, para continuar meus estudos na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana, com sede em São Leopoldo — em Alemão. Fiquei lá durante um semestre e em Agosto de 1967 fui para os Estados Unidos, porque ganhei uma bolsa completa do Pittsburgh Theological Seminary para ir estudar lá. Estudei no Seminário, já em nível de Pós-Graduação, de 1967 a 1970 (M.Div.), e na University of Pittsburgh de Maio de 1970 a Agosto de 1972 (Ph.D.). Ao terminar o Doutorado, em 8.8.1972, considerei terminada a minha década de 60, como já observei. O ano de 1967 foi o último em que fui solteiro, e o ano de 1972, o último em que fui aluno…
Mas mais importante do que os estudos foi o choque cultural de, pela primeira vez, viver em um país estrangeiro — em um país que eu admirava muito e cuja língua vinha estudando com afinco durante toda a década de 1960. No primeiro ano do Seminário de Pittsburgh (1967, Outubro) me casei, meio intempestivamente, com aquela que tinha sido minha última namorada em Campinas. Nos anos em que fiquei nos Estados Unidos houve lá a revolução cultural dos hippies, a revolução sexual decorrente da distribuição generalizada da pílula anticoncepcional, houve os protestos dos negros, o discurso “I Have a Dream” de Martin Luther King, houve o protesto da maioria branca contra a Guerra no Vietnam… A junção dos protestos dos negros e dos brancos fez com que o centro das principais grandes cidades do país literalmente pegasse fogo. No tocante aos estudantes, eles ocupavam, fazendo sit-ins (literalmente sentando-se no chão, nas entradas, para não deixar ninguém entrar) nos prédios administrativos e acadêmicos das universidades, paralisando suas atividades. Na cidade de Berkeley, que era quase que totalmente universitária, a Câmara Municipal, composta majoritariamente de estudantes da Universidade da California em Berkeley, aprovou a liberação da maconha… Woodstock foi uma festa — uma festa de loucos. Gente ouvindo rock, enchendo a cara de álcool, fumando maconha, ou tomando drogas mais fortes, e transando de forma generalizada a céu aberto, num terreno que, ao final da festa, parecia mais o chão enlameado de um chiqueiro…
No plano pessoal, eu aprendi a gostar de esportes a que nunca havia assistido antes, como futebol americano, baseball, hockey no gelo, golf… La atrás, nos anos 1964-1966, no Seminário de Campinas, comecei a fumar e continuei a fumar durante toda a década e durante a década seguinte, até 1983, quando fiz 40 anos. Também no Seminário bebi bebida alcoólica pela primeira vez (cerveja e vinho). Em Pittsburgh, aprendi a beber coisa mais forte e a jogar cartas a dinheiro (felizmente, dinheiro miúdo). Enquanto trabalhava na Bosch, em Campinas, fiquei bom e viciado no jogo de dominó…
Apesar de toda essa excitação, continuei a ser sempre o primeiro aluno da classe tanto no Seminário de Campinas como no Seminário de Pittsburgh. No Doutorado, na Universidade de Pittsburgh, fiz dezoito cursos de três créditos, ficando com média (GPA=Grade Point Average) de 4.00, a máxima, tendo recebido nada menos de “A” em todas as disciplinas que cursei. Reconheço que sacrifiquei meu casamento e minha vida social para estudar, vivia mais na biblioteca do Seminário (onde morei o tempo todo) do que em meu apartamento, no próprio campus, vindo a trabalhar na Biblioteca das 19 às 22h durante o Doutorado. Mas como tinha a chave do prédio, ficava lá dentro até 2 ou 3 horas da manhã. No dia seguinte, às 8h, se não houvesse aula, já estava lá de novo. Em todas as férias, trabalhei no Seminário, lavando banheiros e pintando quartos, no primeiro ano, em 1968, depois cortando grama (em 1969-1970), depois (em 1971) como motorista da caminhonete da escola. De Setembro de 1971 a Agosto de 1972 fui Teaching and Research Assistant do Prof. George Kehm, de Teologia Sistemática, que substituí em várias aulas durante o ano. Fui também motorista particular de um professor tetraplégico do Seminário — que tinha um enorme Cadillac novo, que eu dirigia com muito orgulho…
Foram vários tipos de experiência e de sensação. Em 1969-1970 fui “Student Minister” numa igreja — a Igreja Presbiteriana de Evans City, PA. Pregava uma vez por mês, para dar folga ao Rev. Dr. John T. Brownlee, que estava para se aposentar, e cuidava do trabalho com os adolescentes e jovens. Grande experiência, mas que me confirmou a ideia de que eu não queria ser pastor, que preferia seguir os estudos e me tornar professor universitário.
Fiz grandes contatos e amizades no Seminário, especialmente com os professores Markus Barth (filho de Karl Barth), Dietrich Ritschl (sobrinho neto de Albrecht Ritschl), George H. Kehm, e Ford Lewis Battles — Ritschl e Battles sendo as maiores influências, pois me deixaram apaixonado pela História da Igreja Cristã [Battles] e pela História do Pensamento Cristão (História da Doutrina, ou História do Dogma) [Ritschl]. Marcaram-me indelevelmente. Nem Ritschl nem Battles davam o que se pode chamar de aula convencional. Eles batiam papo com os alunos, às vezes na casa deles, tomando vinho… Na “aula”, comentavam aspectos interessantes e curiosos da matéria, passavam trabalhos escritos, que liam e comentavam, e tentavam (com sucesso) convencer os alunos da importância e da fascinação de suas matérias. Influenciaram-me. Lembro-me com enorme satisfação do dia em que uma aluna minha na UNICAMP me disse que adorava minhas aulas mas que eu não ensinava nada… Longe de ser uma crítica, essa observação foi um dos elogios que guardo com maior carinho no coração. Mas isso já foi na década de 1980-1990. Mas a fonte desse estilo didático — a Paloma hoje o chamaria de estilo matético — tem raízes lá em Pittsburgh.
Mas os anos 60 também foram a década em que foram assassinados John F. Kennedy (1963), Martin Luther King (1967) e Robert Kennedy (1968). Também foi a década em que o homem chegou à Lua (1969). E foi a data (1970) em que os Pirates, o time de baseball de Pittsburgh foi Campeão Mundial do esporte.
Em 1968, Richard M. Nixon derrotou Hubert H. Humphrey, que era Vice-President de Lyndon Johnson. Torci para o Nixon, do Partido Republicano, pois já naquela época não tolerava o pessoal do Partido Democrata, em especial os Kennedys.
No cinema, os anos 60 foram os anos de ouro de Brigitte Bardot, que encerrou carreira em 1973 mas, se não me engano, vive até hoje, e os anos finais da carreira e da vida de Marilyn Monroe, que teve morte prematura e trágica em Agosto de 1962. Marylin Monroe morreu cedo, mas ainda lindíssima. Brigitte Bardot vai morrer tarde, mas feia pra burro…
Quanto à música, Elvis Presley (quase tudo), the Beatles (quase tudo), Roy Orbison (quase tudo), Peter, Paul & Mary (“If I had a Hammer”, “Blowin’ in the Wind”, “The Times They are a-Changin'”), the Mamas and the Papas (“California Dreamin’), Simon and Garfunkel (“The Sound of Silence”, “Bridge Over Troubled Waters”, “El Condor Pasa”), Joan Baez (“Where Have All the Flowers Gone?”, “The Night they Drove Old Dixie Down”), Bob Dylan (“Blowin’ in the Wind”, “The Times They Are a-Changin'”), the Fifth Dimension (“Let the Sunshine In”, “The Age of Aquarius”, no finzinho da década), The Carpenters (“Close to You”, “For All you Know”, “We’ve Only Just Begun”, etc. também no finzinho da década “expandida” que eu defini… – ah! que voz melodiosa e aveludada tinha a Karen Carpenter, que morreu cedinho, da maldita droga), etc.
Misturem tudo isso, e dá um caldo fantástico.
Sobrevivi a tudo isso, sem jamais tomar droga, sem sequer experimentar um cigarrinho de maconha. Uma proeza, eu digo. Caretice, podem dizer alguns outros.
Mas o interesse e a fascinação pelos anos 60 continuam até hoje. Eis os títulos de alguns livros que tenho no meu quarto (não no escritório):
- Todd Gitlin, Sixties: Years of Hope, Years of Rage
- Bryan Burrough, Days of Rage: America’s Radical Underground, the FBI, and the Forgotten Age of Revolutionary Violence
- Myron Magnet, The Dream and the Nightmare: The Sixties’ Legacy to the Underclass
- Jules Witcover, 1968: The Year the Dream Died – Revisiting 1968 in America
É isso.
Em Salto, 9 de Setembro de 2020 — mês e ano em que completei 77 anos e comecei a viver o meu septuagésimo oitavo ano. Meu pai morreu no septuagésimo nono da vida dele — a sobering thought.
Categories: Sixties
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