“O futuro pertence àqueles que forem mais capazes de usar as próprias cabeças do que as próprias mãos“. [Revista Newsweek, citada por Domenico de Masi em O Ócio Criativo, 2000, 6a.ed. da tradução brasileira, p.107]
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Em seu livro The Destiny of Man, que eu comprei em 29.2.1968 (ano bissexto), quase 53 anos atrás, mas estou lendo apenas agora, Nicholas Berdyaev (ou Nicolai Berdyaeff), filósofo ucraniano que viveu de 1874 a 1948, faz duas afirmações que hoje considero importantes e, mais do que isso, verdadeiras — embora reconheça que são controvertidas e vão gerar polêmica. [O livro foi publicado em 1960, com esse título, em tradução do Russo para o Inglês que havia sido realizada em 1937. O original em russo foi publicado pela primeira vez em 1931.]
A primeira afirmação é esta:
“O socialismo não reconhece a hierarquia qualitativa do trabalho, e, consequentemente, dos trabalhadores” (p.215; ênfase acrescentada).
Para Berdyaev, o socialismo vê o trabalho a partir de uma concepção puramente quantitativa. Embora o socialista reconheça que haja diferentes tipos de trabalho, e que uma mesma pessoa pode bem realizar diferentes tipos de trabalho em momentos distintos, o que caracteriza, diferencia e distingue o trabalho feito por uma pessoa e o trabalho feito por outra pessoa, ou, então, o trabalho feito por uma mesma pessoa em momentos distintos, são apenas os aspectos quantitativos, que se expressam numericamente: um trabalhou mais tempo do que outro, ou a mesma pessoa gastou mais tempo realizando um trabalho num momento do que gastou realizando outro trabalho em momento distinto. Estranho observar que a chamada produtividade, que consiste em produzir mais produtos (bens ou serviços) em uma mesma unidade de tempo (uma hora ou um dia de trabalho), embora seja facilmente quantificável e expressa em números precisos, em regra não é incentivada pelos socialistas por aparentemente implicar a competição e, em última instância, a recompensa (pagamento) por mérito, que seria destruidor da igualdade de tratamento no ambiente de trabalho.
Assim, para o socialista, a remuneração do trabalho deve ser função exclusivamente do número de horas trabalhadas, não da natureza do trabalho feito, ou de sua qualidade, ou da rapidez com que foi feito. Assim, o socialismo não leva em conta os aspectos qualitativos do trabalho realizado.
Por isso o socialismo não pode reconhecer a verdade desta segunda afirmação de Berdyaev, a saber:
“O trabalho criativo é o privilégio de uma pequena fração da humanidade, pois pressupõe a existência e a posse de dons especiais” (p.215; ênfase acrescentada).
Esse fato tem que ver com a ênfase que a maior parte dos socialismos coloca sobre a igualdade humana. O socialismo insiste que os seres humanos são todos iguais em aspectos substantivos, não apenas formais. Sendo substantivamente iguais, o produto resultante de seu trabalho deve ser remunerado de forma igualitária, e não há como justificar pagar mais pela hora (dia, semana, mês) trabalhada para alguém porque o trabalho dele é mais complexo, ou difícil, ou arriscado, ou exige maior competência ou qualificação, ou é feito com maior rapidez e sem falhas, ou, então, é socialmente mais importante do que o trabalho dos outros.
Quem acredita que os seres humanos são todos iguais, em um sentido mais do que formal (a igualdade formal é aquela que postula que todos os seres humanos devem ser considerados iguais perante a lei, por exemplo, ou que devem ser considerados iguais na dignidade de tratamento de que são merecedores por parte de outros seres humanos), não pode acreditar que os seres humanos sejam diferentes, na realidade únicos, em um sentido substantivo. No entanto, é forçoso reconhecer que dizer que alguém é igual a outro é afirmar um fato que pode ser constatado empiricamente através da observação. Dizer que alguém deve ser considerado igual a outro (mesmo que, de fato, os dois sejam diferentes em uma ou mais de uma característica significativa e relevante) é afirmar um valor ou um princípio moral que pode e precisa ser defendido filosoficamente.
Os socialistas não acreditam haja características humanas (competências, habilidades, capacidades) que sejam especiais (ou dons, como Berdyaev as rotula): características tão especiais que apenas uma pequena fração dos seres humanos seja portadora delas, porque são raras, porque não são amplamente distribuídas, e que a posse dessas características no ambiente de trabalho pode justificar tratamento (privilégios) e remuneração (pagamento) diferentes.
Berdyaev, escrevendo em 1968, não podia imaginar que essas características especiais iriam se tornar tão importantes, no novo século (que ainda estava mais de trinta anos à frente), que muitos iriam designá-las como “habilidades do século 21”. Outros as designaram como “habilidades sócio-emocionais”, ainda outros como “habilidades não-cognitivas”, outros como “habilidades relacionais” ou “habilidades interpessoais”, outros como “habilidades soft” (em contraposição às habilidades tradicionalmente reconhecidas como importantes, chamadas de hard, como as habilidades lógicas, linguísticas, matemáticas, numéricas, analíticas, sintéticas, raciocinativas, argumentativas, etc. (todas elas de natureza tipicamente cognitiva).
Entre as características especiais está a imaginação criativa: a habilidade de imaginar algo que não existe e de criá-lo. Há uma frase famosa, cuja autoria é atribuída a várias pessoas, que afirma: “Uns contemplam aquilo que existe e tentam descrever a realidade e explicar por que as coisas são ou funcionam assim. Eu imagino coisas que não existem e me pergunto: ‘Por que não criá-las?'” Essa é a imaginação criativa. Berdyaev, bem antes do século 21 (e do Terceiro Milênio) era fascinado por essa habilidade ou competência (ou esse conjunto de competências e habilidades). Vale a pena mencionar que, hoje em dia as pessoas normalmente se referem a “habilidades e competências”: uma competência (como escrever um romance, ou dirigir um automóvel, etc.) em regra envolve um “feixe” razoável de habilidades.
A imaginação criativa (pela qual também Domenico de Masi, sociólogo italiano bem conhecido no Brasil, é fascinado – vide o seu livro Criatividade e Grupos Criativos (original italiano de 2002, tradução brasileira de 2003) é uma dessas competências que envolvem várias habilidades: a inventividade e a engenhosidade, por exemplo, isto é, a capacidade de inventar para si um trabalho e em seguida realizá-lo. Lembremo-nos de Thomas Edison, por exemplo. A maior parte das pessoas não é capaz de inventar para si um trabalho que seja, ao mesmo tempo, realizador e rentável, que lhes permita, (a) de um lado, que sintam prazer e felicidade ao realizá-lo, tendo o sentimento de que até de graça o fariam, e, (b) do outro lado, que outras pessoas considerem aquele trabalho valioso e estejam dispostos a pagar por ele ou pelos frutos dele, assim possibilitando que aqueles que realizam aquele trabalho aufiram rendimentos, frutos do seu trabalho, que lhes permitam sustentar-se a si mesmos e àqueles que deles possam depender. Trabalhar assim é tão realizador que a pessoa nem fica com a impressão de que está trabalhando: a sensação que ela tem é a de que está brincando, de que está se divertindo…
Na porta da minha sala no Núcleo de Informática Aplicada à Educação (NIED), que eu criei na UNICAMP em 1983, eu pus uma placa que dizia: “Aqui se brinca em trabalho”… Ali se trabalhava com LOGO, uma linguagem de programação projetada para crianças. Mais tarde, depois de aposentado, fui trabalhar na representante brasileira da LEGO, outro brinquedo…
É forçoso reconhecer que a imaginação criativa não é algo simples, binário, que é representada por ou um ou zero, que ou se tem ou não se tem, e que, no primeiro caso, se tem em toda a sua amplitude e variedade e no grau mais elevado, e, no segundo caso, não se tem de forma absoluta e radical, em nenhuma área ou aspecto da vida, não sendo possível desenvolvê-la. Não: a imaginação criativa pode aparecer, de uma forma até sofisticada e em um grau até elevado, numa pessoa, no exercício de um determinado tipo de atividade, sem que a mesma pessoa a exiba no exercício de outras. É inegável que Garricha era um jogador de futebol extremamente criativo, mas cuja imaginação criativa parecia se limitar exclusivamente à prática do futebol. Reconhecidos cientistas, famosos por sua imaginação criativa em sua área específica de atuação, mostram-se perfeitos idiotas e completos imbecis ao discutir religião ou mesmo política. E há alguns privilegiados, certamente não muitos, que parecem capazes de exibir imaginação aguçada e criatividade elevada quase em qualquer atividade a que se dedicam. Em relação a esses, creio que Berdyaev está certo em afirmar que representam uma fração diminuta da raça humana.
Os não criativos, ou, melhor dizendo, os não tão criativos, não só não conseguem inventar o tipo de trabalho criativo mencionado atrás como não são capazes nem mesmo de executá-lo, depois de ele ter sido inventado pelos mais criativos (“i criativi“, em Italiano, língua do povo que se considera mais criativo no mundo…)”. Nessa visão, as pessoas, em sua maior parte, estão destinadas a executar tarefas, majoritariamente rotineiras e repetitivas, e em grande parte físicas, embora também possam ser mentais (sem deixar de ser rotineiras e repetitivas), que lhe são estabelecidas e determinadas por alguém mais criativo do que elas. Nos casos em que uma pessoa se percebe fazendo o que alguém menos criativo do que ela lhe determina, ela em geral se desmotiva, pede dispensa e vai trabalhar em outro lugar.
Mas deixando Berdyaev parcialmente de lado, aqui entra um elemento novo, relativamente recente, para o qual, agora, Domenico de Masi (entre outros) chama a nossa atenção, no livro dele já mencionado. A pertinente observação de de Masi é feita no contexto da constatação de que os empresários estão cada vez mais interessados no fenômeno da imaginação criativa — e isto por causa do fenômeno da automação de processos industriais e administrativos causada pela introdução maciça das tecnologias digitais nas empresas. Faço uma citação quebrada em duas partes:
“Todo computador que entra numa empresa subtrai aos trabalhadores uma parte de [seu] esforço físico e intelectual, [ao assumir] as suas tarefas repetitivas, alienantes e estúpidas, deixando à disposição deles apenas as tarefas mais ricas em conteúdo intelectual, não processáveis, ligadas à [criatividade e] inventividade de quem [as] desenvolve.” (p.564. Fiz algumas alterações no texto para deixá-lo mais claro e para corrigir o que me parece ser um erro de tradução, embora eu não tenha o original italiano em mãos.]
Intervenho eu agora, com algumas observações de minha lavra…
Como, em muitos casos, as tarefas de muitos trabalhadores nas empresas, tanto nas industriais, como nas comerciais, nas financeiras e nas de serviços, é totalmente composta, ou quase, de tarefas repetitivas e rotineiras, o computador causa um enorme conjunto de problemas sociais e econômicos de solução muito complexa e difícil — e que não se dará no curto prazo.
A importante questão que se coloca é: o que fazer com esses funcionários que a tecnologia tem substituído, vem substituindo, e continuará a substituir, à medida que ela avança até mesmo sobre profissões mais criativas?
1. Dentro das próprias empresas, a solução mais fácil e econômica é simplesmente despedir os empregados que se tornaram dispensáveis, usando o dinheiro economizado para realizar mais investimentos em tecnologia. (O número de bancários dispensados pelos bancos nos últimos 25 anos é fenomenal — e algo semelhante acontece em todas as áreas.) Essa “solução”, porém, conquanto resolva o problema das empresas, não resolve o problema dos empregados demitidos.
2. Uma solução mais criativa e mais humana, ainda dentro das próprias empresas, é oferecer programas intensivos de treinamento para os empregados que seriam dispensados, focados (a) no manejo e domínio das principais tecnologias digitais e (b) no desenvolvimento ou construção de competências e habilidades de interesse das empresas, em ambos os casos com vistas ao reaproveitamento em outras áreas de atividade dos empregados que haviam se tornado dispensáveis. Talvez seja utópico imaginar que todos eles possam fazer bom uso dessas oportunidades e vir a ser reaproveitados.
3. Fora das empresas, mas ainda no âmbito da iniciativa privada, houve, nas décadas de 1980 a 2010, um “boom” de escolas de informática e de outras empresas de treinamento profissional que ofereciam: (a) no caso das escolas de informática, cursos livres de informática que cobriam desde cursos de História da Informática e de Iniciação a Microcomputadores, até cursos avançados de programação em aplicativos sofisticados como AutoCAD, passando por cursos, os mais populares, no que se convencionou chamar, apud a Microsoft, sistema “Office”: Processadores de Texto (como Word), Planilhas Eletrônicos (como Excel), Gerenciadores de Bancos de Dados (como Access), e Softwares de Apresentação de Palestras (como PowerPoint); (b) no caso de empresas que oferecem outros treinamentos, cursos livres profissionalizantes nas áreas “mais quentes” do mercado: comunicação, administração do tempo, organização e métodos, etc.). Hoje em dia sobraram poucas dessas escolas de informática, e quanto às empresas de treinamento profissional, o mercado também se reduziu consideravelmente, em grande medida porque as pessoas, em sua maioria, e em especial os jovens, aprendem o que desejam aprender por conta própria, usando livros e vídeos como apoio e tirando dúvidas com amigos e colegas pelas redes sociais.
4. Fora do mundo empresarial, ONGs apareceram em todos os cantos tentando oferecer, às populações mais carentes, algo mais ou menos equivalente ao que ofereciam as escolas de informática pagas, através de convênios com redes de escolas pública. No Instituto Ayrton Senna, com o apoio financeiro da subsidiária brasileira da Microsoft, foram criados programas como “Sua Escola a 2000 por Hora”, que se tornou “Escola Conectada”, e outros, que obtiveram destaque nessa área.
5. Na área governamental, em todos os seus níveis, houve programas de aquisição de equipamentos para as escolas (“Informatização de Escolas”), bem como programas de treinamento para professores no uso de softwares aplicativos genéricos (como o Office) e de softwares educacionais voltados para as diferentes áreas do currículo, como foi o caso, no âmbito do Governo Federal, dos programas EDUCOM e PROINFO.
6. As universidades, públicas e privadas, participaram desse esforço. Eu próprio, em 1983, criei, na UNICAMP, o Núcleo de Informática Aplicada à Educação (NIED), que existe até hoje, estando para completar 40 anos em 2023, que abrigou o Programa EDUCOM da UNICAMP, elaborado por uma equipe coordenada por mim, e que fez convênio com várias escolas públicas e com instituições diversas, privadas, governamentais, não-governamentais e não-lucrativas.
7. No governo federal, fora da área da Educação, houve iniciativas voltadas para algo quase que equivalente a Programas de Renda Mínima para famílias que ficaram sem renda por causa da evolução tecnológica — ou que nunca tiveram uma renda minimamente adequada.
Programas de Renda Mínima, ou algo parecido, apareceram em quase todos os países mais desenvolvidos. Esses programas implicavam uma admissão aberta do fato de que a evolução tecnológica e a automação do trabalho em quase todas as áreas da economia geraram um desemprego estrutural que dificilmente será revertido e que deve, portanto, ser considerado algo definitivo, e cada vez mais aprofundado, à medida que o tempo passa. Em outras palavras, o desemprego estrutural, causado pelo uso da tecnologia em quase todas as áreas do universo do trabalho, é algo que está aqui para ficar.
Há ainda um outro desenvolvimento, este mais recente, embora já no ano 2000, Domenico de Masi se referisse a ele como já em pleno curso. Em outro livro, baseado em uma entrevista concedida a uma jornalista, intitulado O Ócio Criativo, de Masi, depois de observar que a Revolução Industrial retirou as pessoas que trabalhavam em casa e as levou para a fábrica e para o escritório, afirmou que a Revolução da Informática iria produzir um movimento reverso, até mesmo para os que exercem atividades criativas, mas o fazem nas dependências de uma empresa:
“É importante refletir hoje (2000) sobre tudo isso, pois estamos às vésperas de uma revolução nova, e igualmente drástica: a da reorganização informática, graças ao teletrabalho e ao comércio eletrônico, que trarão de volta o trabalho para dentro dos lares, e, assim, nos obrigarão a rever toda a organização prática de nossa existência.” (p.59).
Voltando ao outro livro de Domenico de Masi, é forçoso reconhecer que ele é otimista demais em alguns aspectos e pessimista demais, em outros. Afirma ele, em continuação à passagem contida na última citação de Criatividade e Grupos Criativos:
“Os trabalhadores [é de se supor que virão se tornar, daqui para a frente] cada vez mais escolarizados, especializados, e cultos [e, assim, que] estarão prontos para essas tarefas mais criativas — [mas isto] se sua fertilidade intelectual não fosse com muita frequência castrada por uma organização ‘industrial’ obsoleta, que ainda lhes impinge regras feitas há 100 anos, [regras essas que foram criadas] em função [da necessidade] de operários semi-analfabetos [virem a ficar] encarregados das linhas de montagem, [regras que são] amplamente inadequadas para fecundar a invenção continuadamente pretendida por um mercado mais voraz por produtos inéditos.” [p. 564. Como no caso da citação anterior, fiz algumas alterações no texto para deixá-lo mais claro e para corrigir o que me parecem ser inadequações de tradução, embora eu não tenha o original italiano em mãos para conferir].
Algumas ressalvas, também de minha lavra:
Primeiro, de Masi talvez seja otimista demais em relação ao material humano, imaginando que esse material humano teria, sem exceção, ou em sua maioria, a “fertilidade intelectual” para se tornar adequadamente escolarizado, especializado, educado, e, ao mesmo tempo culto, de modo a não ficar marginalizado do mercado. Parece-me questionável que, mesmo que as escolas, as ONGs, as empresas e até os governos sejam exemplares na execução (cada um em sua esfera de responsabilidade) da tarefa de educar, treinar, capacitar, aperfeiçoar e especializar (quando necessário) as pessoas para as novas realidades que surgiram em decorrência do aparecimento das tecnologias digitais, todas as pessoas (ou mesmo a maioria das pessoas) teriam a capacidade e a motivação de se valer apropriadamente dessa educação escolar e dessa formação extra-escolar. [A propósito, por falar em novas realidades, vale a pena ler o livro de Peter Drucker que, em Português, têm o título de The New Realities, 1989 (As Novas Realidades, em Português, também 1989).]
Segundo, de Masi talvez seja pessimista demais em relação à possibilidade de as empresas se reinventarem. Ele parece não acreditar que elas o façam, pelo menos a curto prazo e com rapidez suficiente. No entanto, é necessário registrar que inovação se tornou um imperativo de sobrevivência para as empresas, e, quando se chega a esse ponto, em que o desafio é mudar ou morrer, boa parte das empresas opta por mudar. As outras, naturalmente, morrem. Que Deus as tenha a estas, e que a gente aprenda com a história delas quando visita os livros que descrevem os incríveis cemitérios de empresas — desde as que não vingam e morrem cedo até as centenárias, que foram por bom tempo bem sucedidas, mas mudaram pouco e tarde demais.
Terceiro, de Masi novamente me parece otimista demais em relação à possibilidade e a capacidade de as escolas se reinventarem. Aqui eu já perdi toda a esperança que um dia tive e estou convicto de que, no futuro, quem sabe até bem mais breve do que eu imaginava, haverá uma revolução em que a educação será totalmente desescolarizada. A Pandemia do Covid já nos fez avançar bastante nessa direção, embora ainda sem prescindir das escolas. Mas nós vamos chegar lá.
Quarto, de Masi, e quase todo mundo mais, parece considerar que a distinção entre escola particular e escola privada é irrelevante nesse contexto, porque, afinal das contas, todas elas são escolas. É um erro flagrante fazer isso. As escolas não estatais, ou seja, aquelas que não são sustentadas pelos impostos arrecadados à força da população pelo Poder Público, aí incluidas as chamadas confessionais, compartilham com as empresas a visão de que elas ou mudam, ou morrem. Assim, para não morrer, mudam, mesmo que as mudanças não sejam muito compatíveis com sua pedagogia e, por isso, sejam feitas com um pouco de má vontade. As escolas públicas, entretanto, sustentadas por dinheiro público, não com pagamentos feitos por seus clientes diretos, os alunos, ou então por seus pais, estas são geridas e operadas por funcionários pagos com dinheiro público, e têm uma clientela garantida pela obrigatoriedade da escolarização em faixas etárias cada vez mais extensas (obrigatoriedade determinada pelo estado), não se vê diante do imperativo de mudar ou morrer: a escola pública acredita que sobreviverá, mesmo sem mudar, para sempre, diante da clientela cativa que tem. Eu acredito que em pouco tempo ela será confrontada por um enorme choque de realidade, que, em outros países mais desenvolvidos do que o Brasil, já chegou.
Quinto, para que esse choque de realidade aconteça é necessário que haja uma revolução que não abrange apenas as escolas e as empresas: trata-se de uma revolução que produzirá uma profunda transformação cultural e social. Eu acredito que essa revolução está em curso com as iniciativas de home schooling, deschooling, unschooling, etc. cujo crescimento será impossível conter.
É oportuno registrar, a propósito dessa tese que defendo, e voltando, de certo modo às teses de Berdyaev, que parte essencial da revolução que produzirá essa transformação cultural tem que ver com uma mudança drástica da população em geral em relação ao papel da iniciativa privada empresarial (e não só na área educacional) na sociedade.
As constatações que Berdyaev faz, e que eu complemento e atualizo (pois elas foram feitas 90 anos atrás, em 1931), explicam, em grande medida, a dificuldade que possuem os socialistas, em especial os marxistas (e houve um momento recente em que parecia que, no Brasil, todo mundo era socialista de vertente marxista!), de reconhecer que “i criativi“, entre os quais estão os empreendedores ou fundadores de empresas, e não seus empregados, são realmente responsáveis pela maior parte do valor que suas empresas geram, e que lhes permite pagar os salários de seus empregados — tanto no caso de empresas de serviços, como, também, de empresas manufatureiras e de empresas de várias outras naturezas (extrativas, agrárias, pecuárias, etc.).
Basta ler o colossal Atlas Shrugged (A Revolta de Atlas), de Ayn Rand, publicado originalmente em 1957, para constatar isso. Resumo as principais teses do livro.
1. São esses empreendedores ou criadores de empresas que, primeiro, ou percebem uma necessidade não satisfeita entre os consumidores, ou, em muitos casos, produzem algo (serviço ou bem) cuja necessidade ainda não é sentida, mas que, assim que o serviço ou o bem é anunciado e posto à venda, acaba por gerar essa necessidade e se tornar não só necessário como indispensável.
2. São eles que, segundo, têm a iniciativa de empreender, usando seus próprios recursos ou buscando recursos de outrem, um negócio que vai produzir o serviço ou o bem.
3. São eles que, terceiro, selecionam e recrutam empregados para viabilizar o negócio, assim lhes dando empregos, nos quais eles vão fazer, naturalmente, não o que querem, mas o que “i criativi” estabelecerem e determinarem.
4. São eles que, quarto, diretamente ou por pessoas interpostas, gerenciam todo o processo.
5. São eles que, quinto, assumem os riscos de perda financeira e material, e o impacto psicológico (que às vezes leva até ao suicídio), se o seu empreendimento ou negócio, por qualquer razão, totalmente alheia à sua vontade e além de sua responsabilidade, até uma mega pandemia global, não vier a ser bem sucedido.
6. E, finalmente, são eles que, sexto, colhem os merecidos benefícios financeiros, materiais e psicológicos se e quando o empreendimento ou negócio que criaram vier a ser bem sucedido.
O sistema de economia política de livre mercado, ao contrário do que apregoam os socialistas, é um sistema econômico em que há máxima liberdade de ação (se o estado não intervier para fixar preços mínimos ou máximos, decretar reservas de mercado, criar agências regulamentadoras, etc.). Nesse sistema acontece o seguinte:
A. Eu ofereço os meus bens ou serviços ao mercado, apenas se eu quiser, e compra esses bens e serviços de mim apenas quem quiser, isto é, quem desejar esses bens e serviços e achar que eles valem o preço que estou a pedir por eles.
B. Se o meus preços forem muito altos ou a qualidade dos meus bens e serviços deixar a desejar, vão surgir outros vendedores com produtos mais baratos ou de melhor qualidade, e nada impedirá os consumidores de mudarem de fornecedor.
C. Ganha, nesse jogo, quem é capaz de fornecer bens e serviços aos potenciais consumidores que atendam às suas necessidades e/ou aos seus desejos, em níveis de qualidade acima do que era esperado e a preços abaixo do que era receado.
Adam Smith, no século 18, já apontou: ninguém dá o seu dinheiro ao açougueiro, ao padeiro, ou ao cervejeiro, porque é altruísta, ou porque gosta deles, ou porque quer que eles enriqueçam. Quem dá o seu dinheiro a eles o faz porque recebe deles benefícios, na forma de bens (ou, em outros casos, serviços) que valem mais do que o dinheiro que está sendo pago a eles em troca dos produtos recebidos. Ninguém é obrigado a vender nada, nem a comprar nada. Qualquer um pode vender o que quiser — e compra quem achar que os produtos vendidos, sejam eles bens ou serviços, valem a pena (i.e., valem o que é pedido por eles). Por isso esse sistema de economia política foi chamado de “livre mercado“.
O nome “sistema capitalista” surgiu em algum momento, porque algum capital é geralmente necessário para se começar a produzir e comercializar algum produto — especialmente se se trata de bens (não havendo necessidade de capital financeiro se o produto for um serviço, como, por exemplo, a ministração de aulas particulares ou a realização de uma tradução). Muitas vezes, como demonstrou a atual epidemia, as pessoas começam a oferecer seus serviços e até mesmo os bens que produzem (comidas, máscaras faciais, etc.) sem ter virtualmente nenhum capital. Isso prova que o sistema é de livre mercado e não, necessariamente, de investimento de capital. O nome “sistema capitalista” surgiu porque, em determinado momento, detentores de capital, que normalmente aplicavam esse capital em ações ou investimentos financeiros, perceberam que sua aplicação em pequenas e promissoras empresas carentes de capital poderia ser um bom negócio. Neste caso, identificavam uma empresa e negociavam com os sócios o investimento de capital nelas em condições aceitáveis a ambas as partes.
O sistema de livre mercado não é um sistema que sobrevive apenas por causa da ganância e da avareza do ser humano contaminado pelo pecado, como apregoavam os padres medievais e continuam a apregoar os modernos socialistas seculares (e alguns religiosos). O sistema de livre mercado se sustenta em alguns valores, o mais importante dos quais é liberdade. Mas há outros valores importantes:
a. A leitura e a análise das necessidades e dos desejos dos consumidores;
b. A iniciativa e a proatividade;
c. O planejamento e fixação de objetivos e metas;
d. A organização;
e. A criação de uma cultura organizacional;
f. A comunicação rápida e efetiva, tanto interna como externa;
g. A boa gestão de recursos (tempo, dinheiro, materiais, e, se necessário, recursos humanos contratados);
h. Uma política justa de salários e benefícios;
i. O estimulo à iniciativa e à proatividade internas;
j. A delegação de responsabilidades e o desenvolvimento de lideranças;
k. A recompensa do mérito acima do esperado e do trabalho supererrogatório;
l. O estabelecimento de prioridades (first things, first);
m. A honestidade, que gera a fidelidade e a confiança dos agentes no mercado;
n. a capacidade de ouvir e bem atender os clientes, sempre surpreendendo-os em um sentido positivo;
o. O respeito com o meio-ambiente;
p. O bom relacionamento com a comunidade próxima e com o público em geral;
q. A gestão de crises (porque elas vão aparecer);
r. A inovação, que permite a introdução de novos bens e serviços antes de o mercado estar perfeitamente consciente da necessidade deles;
s. A frugalidade nos gastos e a simplicidade de estilo;
t. O trabalho duro;
u. O pensamento a longo prazo que leva ao reinvestimento dos lucros no próprio negócio em vez de sua dissipação em consumos desnecessários, só feitos para ostentação.
Essas 21 características que eu acabei de listar são quase um resumo das principais competências chamadas do século 21. O número 21 é uma coincidência mais ou menos forçada…
(A propósito, um ato supererrogatório é uma ação que vai além do que é requerido pela obrigação ou pelo dever. O ato supererrogatório não é obrigatório, podendo ou não ser realizado por um agente, sem que ele incorra em problema legal, contratual, ou moral, mas ele é meritório, por indicar que a pessoa que os realiza está disposta a ir além do que requer a obrigação e o dever, andando a segunda milha, como diz a Bíblia — já que este artigo termina em um tom quase evangélico, quiçá calvinista, no final do dia de Natal.)
Em Salto, 25 de Dezembro de 2020, revisado, com significativos acréscimos, nos dias 26-28 de Dezembro de 2020.
Categories: Liberalism
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