O ideário liberal, especialmente o representado pelo pensamento de Thomas Jefferson, o principal autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, teve influência decisiva sobre o pensamento e as ações dos principais líderes da chamada Inconfidência Mineira [1], em especial (mas não exclusivamente) sobre Tiradentes.
Não podemos nos esquecer das datas.
Em 1776, os Estados Unidos proclamam sua independência, sendo Thomas Jefferson o principal autor da magnífica Declaração de Independência. A Guerra da Independência oficialmente terminou em meados de 1784. Ao final da guerra, Jefferson se tornou Ministro Plenipotenciário dos Estados Unidos na França, cargo este até então ocupado por Benjamin Franklin (desde 1776, ano da Independência, até 1784). Em 1784 Jefferson viajou para a França, com sua filha mais velha, Martha, e um criado (James Hemings), e em Maio de 1785 Jefferson passou a ocupar a posição de Franklin (que é mais ou menos equivalente à posição de Embaixador, embora com mais poder). É sabido e notório que Jefferson foi extremamente importante na deflagração da Revolução Francesa, que teve lugar em 1789, quando ele ainda estava na França. Por causa das perturbações da ordem na França, e da eleição de George Washington como primeiro Presidente dos Estados, Jefferson recebeu ordem para voltar para os Estados Unidos. Em 1790 Jefferson se tornou o primeiro Secretário de Estado (Chanceler, Ministro das Relações Exteriores) dos Estados Unidos, atuando no governo de George Washington. Ficou no cargo até 1793, quando renunciou. Em 1796 foi eleito Vice-Presidente dos Estados Unidos, na presidência de John Adams. Em 1800 foi eleito presidente dos Estados Unidos, cargo que assumiu em Março de 1801 e exerceu durante oito anos (dois mandatos de quatro anos), até Março de 1809 [2].
Ou seja, enquanto Jefferson era Embaixador dos Estados Unidos na França, e a Revolução Francesa era planejada, com seu apoio e sua ajuda, a Inconfidência Mineira, por sua vez, estava acontecendo aqui… Tiradentes foi preso em 10 de Maio de 1789, sessenta e quatro dias antes da Tomada da Bastilha (14 de Julho do mesmo ano). Mas a admiração dos que tentavam fazer o Brasil independente estava muito mais com os americanos do que com os franceses.
Eis o que diz Kenneth Maxwell, conhecido brasilianista, em seu artigo “Conjuração Mineira: Novos Aspectos”, baseado na apresentação feita no dia 10 de maio de 1989 (bicentenário da prisão de Tiradentes), no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP) – a citação é longa, mas vale a pena:
“Por uma formidável combinação de circunstâncias, o conflito aberto no interior do esquema imperial luso-brasileiro coincidiria com o desmoronamento do sistema mercantilista da potência colonial europeia mais poderosa [a França]. Entretanto, o fermento da inovação — dentro do Brasil — já estava levantando questões mais amplas, que só podiam indicar a pertinência do exemplo das treze colônias rebeladas ao norte da América. As medidas repressivas portuguesas não podiam deixar de evocar no Brasil a alternativa lógica que a fundação dos Estados Unidos exemplificava de maneira brilhante e tentadora.
Em outubro de 1786, Thomas Jefferson, embaixador dos Estados Unidos na França, recebeu uma carta vinda da velha Universidade de Montpellier, assinada com o pseudônimo de Vendek. O missivista dizia ter assunto muito importante a tratar, porém queria que Jefferson recomendasse um canal seguro para a correspondência. Jefferson fê-lo imediatamente. Em maio do ano seguinte, 1787, a pretexto de visitar as antiguidades de Nîmes, Jefferson acertou um encontro com Vendek. Jefferson comunicou a sua conversa com Vendek à comissão para a correspondência secreta do congresso continental americano: “Eles [os brasileiros] consideram a Revolução Norte-Americana como um precedente para a sua”, escreveu o embaixador; “pensam que os Estados Unidos é que poderiam dar-lhes um apoio honesto e, por vários motivos, simpatizam conosco (…) no caso de uma revolução vitoriosa no Brasil, um governo republicano seria instalado” (Thomas Jefferson, 1953, Jefferson a Mr. Jay. Marselha, 4 de maio de 1787. AMI, II, pp.13-9).
Vendek, José Joaquim Maia e Barbalho, natural do Rio de Janeiro, era estudante da Universidade de Coimbra. Jefferson respondeu a Maia que não tinha autoridade para assumir um compromisso oficial. Porém, uma revolução vitoriosa no Brasil, obviamente, disse ele, “não seria desinteressante para os Estados Unidos, e a perspectiva de lucros poderia, talvez, atrair um certo número de pessoas para a sua causa, e motivos mais elevados atrairiam outras” (Thomas Jefferson, op.cit., p.17).
Um relatório minucioso dos comentários de Jefferson chegou ao Brasil, levado por Domingos Vidal Barbosa, estudante em Montpellier (Ver “Estudantes brasileiros na faculdade de medicina de Montpellier. RIHGB, CCXLIII, 41, p.48-50)” [3].
Eis o candente texto de uma das cartas de José Joaquim Maia e Barbalho a Thomas Jefferson, escrita quando este era Embaixador Americano em Paris, que reflete muito bem a admiração que ele tinha pelo filósofo e estadista americano e a confiança que expressava na ajuda americana:
“Sou brasileiro e sabeis que minha desgraçada pátria geme em um espantoso cativeiro, que se torna cada dia menos suportável, desde a época de vossa gloriosa independência, pois que os bárbaros portugueses nada pouparam para nos tomar desgraçados, com o temor que seguíssemos os vossos passos; … estamos dispostos a seguir o marcante exemplo que acabais de nos dar … quebrar nossas cadeias e fazer reviver nossa liberdade que está completamente morta e oprimida pela força, que é o único direito que os europeus possuem sobre a América… Isto posto, senhor, é a vossa nação que acreditamos ser a mais indicada para nos dar socorro, não só porque ela nos deu o exemplo, mas também porque a natureza nos fez habitantes do mesmo continente e, assim, de alguma maneira, compatriotas” [4].
Thomas Jefferson estava certo de que, mais cedo ou mais tarde, os países da América Latina se tornariam independentes da Espanha e de Portugal. Era cético, porém, sobre sua capacidade de implantarem uma democracia liberal nos países independentes. Temia que estes viessem a se tornar uma sucessão de despotismos militares… Como bom protestante, ela duvidava que os católicos, por serem subservientes ao Papa, um poder estrangeiro, e por carecerem da tradição anglo-saxônica de liberdades e direitos, que inclui a liberdade religiosa, pudessem implantar uma real Democracia Liberal na América Latina [5].
A história mostrou que os temores de Jefferson eram fundados. A Inconfidência Mineira soçobrou, Tiradentes foi enforcado em 21 de Abril de 1792. Trinta anos depois o Brasil se tornou independente pelas mãos do Príncipe Regente, que se tornou o Imperador Pedro I, mas, como é notório e sabido, foi uma independência “meia boca”. Assim que o trono de Portugal vagou, com a morte de seu pai, Dom Pedro I abandonou o Brasil nas mãos de uma criança (Dom Pedro II), ainda que com seus regentes, e voltou para Portugal, onde se tornou Dom Pedro IV. Só em 1879 o Brasil se tornou uma República. E as ideias liberais tiveram um papel naquela ocasião também.
De qualquer forma, embora haja quem reivindique um papel importante para a França na frustrada revolução mineira, o papel maior foi o dos revolucionários americanos, neste caso liderados por Thomas Jefferson. Quando eclodiu a Revolução Francesa a revolução mineira já estava destruída. Joaquim Silvério dos Reis traiu o movimento, delatando seus colegas, em 15 de Março de 1789. Tiradentes foi preso no Rio de Janeiro em 10 de Maio de 1789 [6]. Na França, a Revolução Francesa só começou realmente a eclodir com a abertura dos Estados Gerais em 5 Maio de 1789 [7] e, principalmente, com a tomada da Bastilha, em 14 de Julho daquele mesmo ano [8] (naquele caso, concomitantemente com a prisão de Tiradentes, e neste caso, dois meses depois da prisão de Tiradentes).
Além disso consta que Tiradentes não se separava de um conjunto de documentos americanos, entre os quais estavam a Declaração de Independência, uma primeira redação dos Artigos de Confederação (embrião da futura Constituição dos Estados Unidos), um censo das colônias inglesas de 1775, a Constituição de seis dos treze estados confederados, etc. [9].
[1] Concordo plenamente com Kenneth Maxwell quando ele diz: “. . . Francamente não gosto [da designação Inconfidência Mineira], que não uso; a palavra inconfidência vem dos donos do poder e não da oposição. Vem da contrarrevolução e não da revolução; e, enfim, o objeto das nossas comemorações [ele falava no bicentenário da prisão de Tiradentes, 21 de Maio de 1989] é uma revolução frustrada, não uma repressão bem-sucedida. É bom que estejamos bem claros sobre isto”. Belíssima frase, esta penúltima de Maxwell. Vide o seu artigo em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141989000200002&script=sci_arttext.
[2] Essas informações são de conhecimento comum, mas podem ser localizadas na WikiPedia, no artigo sobre Thomas Jefferson: http://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Jefferson. Se o leitor preferir uma biografia de fôlego, recomendo uma das seguintes. A biografia de Jefferson que é mais agradável de ler, em minha opinião, é Understanding Thomas Jefferson, de E. M. Halliday (Harper Collins Publishers, 2001, 2002). Outra biografia, mais recente e bem mais longa, é The Road to Monticello: The Life and Mind of Thomas Jefferson, de Kevin J. Hayes (Oxford University Press, 2008). Outro livro interessante, este mais antigo, é Jefferson by Himself, de Bernard Mayo (University of Virginia Press, 1942, 1970, 1984), que é, de certo modo, uma biografia de Jefferson nas palavras dele mesmo, retiradas de suas publicações, de suas cartas, de seus cadernos de anotações (ele anotava quase tudo que se passava ao seu redor que era, ou poderia vir a ser, de interesse para ele), etc. Ou seja: o livro é quase uma autobiografia, que ele começou a escrever quando tinha 77 anos, mas nunca terminou.
[3] Apud http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141989000200002&script=sci_arttext.
[4] Apud http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=275.
[5] Veja-se http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Jefferson.
[6] Confira-se, a esse respeito, em especial https://pt.wikipedia.org/wiki/Tiradentes.
[7] Confira-se, entre outras fontes, Daniel Rivière, Histoire de la France (Hachette, Paris, 1986), p.194.
[8] Confira-se https://en.wikipedia.org/wiki/French_Revolution.
[9] Confiram-se, a esse respeito, em especial http://guiamanaouropreto.com/guiacultural/?p=14 e http://www.almanaquebrasil.com.br/curiosidades-historia/8005-outro-olhar-sobre-tiradentes.html.
[PS de 28.2.2021: Depois de escrever este artigo achei bem mais material sobre o assunto na excelente biografia de Tiradentes de Lucas Figueiredo: O Tiradentes: Uma Biografia de Joaquim José da Silva Xavier (Companhia das Letras, São Paulo, 2018. Basta procurar o nome de Thomas Jefferson no índice remissivo.]
Em Salto, 7 de Janeiro de 2021
Categories: Liberalism
Leave a Reply