Chegou a Hora de um Cristianismo Sem Igrejas Físicas e Templos?

1. INTRODUÇÃO

A partir mais ou menos do início da Era Pré-Moderna (de meados do século 15 até meados do século 17, basicamente de ca. 1450 a ca. 1650), e, depois, durante a Era Moderna (ca. 1650 a ca. 1920, no final da Primeira Guerra Mundial) e na Era Contemporânea (de ca. 1920 até hoje), a vida de uma pessoa típica no mundo ocidental esteve organizada ao redor de três polos, claramente representados por três instituições: o Lar, a Igreja e o Local de Trabalho. Estes três polos eram identificados com locais físicos em que se erigiam edifícios apropriados: a Casa da família, o Templo religioso, e o Campo (para atividades agropecuárias e até mesmo extrativas), a Fábrica e o Escritório a ela vinculado (para atividades industriais), a Loja (representando o Comércio), e o Escritório / o Consultório / a Agência Bancária etc. (representando atividades de outros tipos de Serviço).

Nas sociedades tipicamente agrícolas, o Lar e o Local de Trabalho se identificavam: a pessoa trabalhava no mesmo local em que vivia com a sua família. Com o surgimento das sociedades tipicamente industriais, fortaleceu-se o movimento em direção à urbanização da vida, com a valorização da cidade, pois o Local de Trabalho passou a se identificar com a cidade, onde havia fábricas, escritórios, comércios, outros tipos de serviços. Assim, nas sociedades industriais o Lar se transportou para a cidade para ficar perto do Local de Trabalho, mas a distinção entre os dois foi claramente mantida: não se trabalhava em casa. A Igreja continuou a ser um foco onipresente, estivesse ela mais longe ou mais perto do Lar. Seis dias eram reservados ao Trabalho e um único dia para o Culto Religioso e o descanso. Depois esse dia único passou a ser um dia e meio, e, finalmente, dois. E já se luta por um fim de semana maior. Na verdade, a chamada Era dos Serviços (ou Era da Informação, ou Era do Conhecimento, ou Era da Criatividade, ou Era do Ócio Criativo etc.) abriu o século 21 e o Terceiro Milênio com a perspectiva de um fim de semana de sete dias… The Seven-Day Weekend: Changing the Way Work Works (O Fim de Semana de Sete Dias: Mudando a Maneira de Trabalhar) é o título de um livro publicado em 2003, que ficou famoso, mundialmente – e o autor é um brasileiro, amigo meu… 

Considera-se que os anos de 1975-1977 representem o marco inicial dessa nova era. Em 1975, na sequência da comercialização do primeiro microcomputador, ainda em formato de kit para pessoal da área de eletrônica, o Altair), Bill Gates abandonou seu curso na Universidade de Harvard para criar a Microsoft; em 1976, pela primeira vez, nos Estados Unidos, o número de trabalhadores do Setor Terciário da Economia, que inclui tudo que não é atividade agropecuária e de extração (Setor Primário) e atividade industrial de manufatura (Setor Secundário), ultrapassou o número de pessoas que trabalhavam nos Setores Primário e Secundário; e em 1977 três empresas lançaram os primeiros microcomputadores ou computadores pessoais destinados não a profissionais de eletrônica, mas ao público em geral, para serem vendidos em grandes lojas de departamento: a americana Apple (o Apple II), a americana Tandem Radio Shack (TRS-80), e a canadense Commodore (Pet, depois Vic-20, depois Commodore-64). Vide a esse respeito três livros fantásticos: Daniel Bell, The Coming of Post-Industrial Society (O Advento da Sociedade Pós-Industrial), de 1973; Alvin Toffler, The Third Wave (A Terceira Onda), de 1980; Paul Frei Berger & Michael Swaine, Fire in the Valley: The Making of the Personal Computer (Fogo no Vale [do Silício]: A Construção do Computador Pessoal), de 1984, 2ª edição, de 2000, amplamente revisada e atualizada. Este último livro ganhou uma terceira edição em 2014, mas com um subtítulo diferente: The Birth and Death of the Personal Computer (O Nascimento e a Morte do Computador Pessoal). A ideia de que o computador pessoal morreu, antes de completar 50 anos, está relacionada à sua substituição, para a maioria absoluta das pessoas, em especial para os mais jovens, por equipamentos de bolso (ou de bolsa), totalmente portáteis, voltados para a comunicação e o processamento de dados (alfanuméricos, visuais e sonoros), como o potente smartphone com armazenamento de dados na nuvem, que as pessoas carregam consigo o tempo todo …

É verdade que isso não valia para todo mundo. Destaco três situações que de certo modo, e até certo ponto, fogem da regra.

Em primeiro lugar, mesmo em plena Era Moderna, o número de pessoas que trabalhava no campo, na agropecuária e das atividades extrativas, era significativo. Refiro-me especialmente a homens, em decorrência do que vou ressaltar no parágrafo seguinte. Mas esse número foi gradual, mas sistematicamente, diminuindo, à medida que a evolução tecnológica permitiu que um número cada vez menor de pessoas produzisse uma quantidade cada vez maior de produtos no universo da agropecuária e das atividades extrativas. 

Em segundo lugar, havia a situação das mulheres, que, mesmo com a urbanização que caracterizou a Era Industrial, continuaram, por um bom tempo, a trabalhar no Lar, não fora de casa, de modo que o seu Lar e o seu Local de Trabalho se identificavam. Assim, para elas, sua vida era centrada no Lar (que também era o seu Local de Trabalho) e, quando muito, na Igreja (onde quase nunca ocupavam atividades de liderança). Nem participar da vida pública elas podiam, pois sequer direito de voto possuíam. Aos poucos, partir do último quarto do século 19 e ao longo do século 20, as mulheres conquistaram direitos políticos (a emancipação política), e, a partir do último quarto do século 20, conquistaram o direito de trabalhar fora de casa, em um emprego mais parecido com o dos homens (conquistando a emancipação financeira). Com o surgimento da pílula anticoncepcional, que lhe permitiu evitar a gravidez indesejada, a mulher passou a competir com o homem no que talvez possa ser chamado de emancipação sexual. 

Em terceiro lugar, havia a situação das crianças e, até certo ponto, dos adolescentes e jovens. No campo, essa população trabalhava com os pais, quer fosse no lar (as meninas, as adolescentes e as moças), quer fosse cuidando da terra, das plantações e dos animais (os meninos, os adolescentes e os jovens). Com a mudança para a cidade, essa população passou a trabalhar nas fábricas, nos escritórios, nas organizações comerciais e de serviço, mas rapidamente surgiu o movimento da escola pública, que redundou na obrigatoriedade da escolarização, que, com o tempo se estendeu por um período cada vez maior, de forma a abranger não só a infância, propriamente dita, mas a adolescência e a juventude. Hoje o período de escolarização obrigatória chegou até os 17 anos. No meu tempo ia dos 7 aos 10 anos. Para estes, a vida se organizava em torno do Lar, da Escola e da Igreja (que, no mundo protestante, criou até uma “Escola Dominical” ou uma “Escola Sabatina” para funcionar no fim de semana – que, por um bom tempo, consistia de um dia só, só vindo a consistir de dois mais recentemente). O adiamento do ingresso no mercado representado pela escolaridade obrigatória para determinada faixa etária não se estenderá mais: na realidade, a escolaridade obrigatória está no fim. Será substituída pela educação não-escolar durante a vida inteira, o tempo todo, em qualquer lugar.

2. A REVOLUÇÃO NO MUNDO DO TRABALHO, NA EDUCAÇÃO, NO LAR

Não é preciso apresentar em detalhe o que tem acontecido nessas áreas destacadas no título desta seção. É fato de todos conhecido que a automação na agricultura, na indústria, nos bancos, nos escritórios, no comércio etc., depois de um início meio reticente, foi rápida. Na agricultura e na indústria, produz-se muito mais com um número muito menor de trabalhadores. Não aconteceu apenas a substituição de mão de obra humana por trabalho realizado por máquinas. Os processos usados na realização do trabalho foram alterados, simplificados e agilizados. 

Na área agropecuária, o Brasil se tornou um ator global, não porque tenha mais território e mais gente do que outros países, mas porque a tecnologia é utilizada de forma intensa. 

Na área industrial, basta investigar relatos de como eram fabricados automóveis quando a indústria automobilística chegou ao Brasil nos anos 1950, deixando claro quantas horas de trabalho de quantos trabalhadores eram necessários para fabricar um Fusca, um Aero Willys, um Simca Chambord, e comparar com os dados de hoje: quantas horas de trabalho de quantos trabalhadores são necessários para fabricar hoje um Toyota Corolla, um Honda Civic, um Hyundai Creta…

Na área bancária, o número de empregados necessários para prestar muito mais e mais eficientes serviços é uma fração daquele que era necessário quando eu comecei a trabalhar, em 1959, no Banco Indústria e Comércio de Santa Catarina S/A… Há pouco tempo morar perto de um banco era uma necessidade. Hoje pouca gente vai ao banco. Tudo é feito a partir de casa por aplicativos em computadores e telefones celulares. 

Nos escritórios a vida se alterou bastante: hoje o chamado Home Office (Escritório em Casa) é comum. O trabalho de um bom número de pessoas é feito a partir de suas casas, não em um salão cheio de gente ou em um cubículo apertado de um escritório. 

No comércio, as compras feitas via aplicativos e entregues em casa são comuns. Restaurantes entregam comida pronta em casa em poucos minutos. Farmácias entregam remédios em casa em poucas horas, no mesmo dia. Supermercados fazem o mesmo. A Amazon reinventou o mercado livreiro causando a quebra não só de livrarias, mas de editoras. O livro eletrônico, com entrega gratuita e instantânea, substituiu o livro impresso, com vantagens (por mais que os amantes do livro impresso, como eu próprio, lastimem o fato). Mas mesmo os livros impressos, que ainda perduram, são entregues em casa em uma fração do tempo que essa entrega levava antes. Lembro-me de comprar livros nos EUA, a partir do Brasil, e eles levavam de três a quatro meses para chegar. Hoje chegam em três a quatro dias, através de couriers globais… Hoje qualquer pessoa que tenha algo a dizer pode publicar um livro eletrônico sem ajuda de profissionais especializados ou editoras. Na verdade, a Amazon reinventou o mercado varejista, porque hoje vende de tudo, até alimento pronto para consumo, entregue através de drones, em grandes cidades de infraestrutura eletrônica  bem desenvolvida.

Na educação, as mudanças têm sido mais lentas, mas nem por isso menos certas… A epidemia dos últimos três anos mostrou que podemos viver muito bem sem escolas, aprendendo através das redes sociais, em comunidades virtuais de aprendizagem e de interesses afins, através de livros, vídeos, filmes. A educação doméstica (home schooling) cresce. Mas o objetivo último é uma sociedade sem escolas, como previu Ivan Illich em 1970. O futuro será de uma sociedade em que a escola estará morta, mas a educação, através da auto-aprendizagem, da aprendizagem por descoberta e da aprendizagem por colaboração, vicejará. 

Aquilo que previram Ivan Illich, em Deschooling Society (A Sociedade sem Escolas), de 1970; Howard Rheingold, em Tools for Thought: The History and Future of Mind-Expanding Technology (Ferramentas para o Pensar: A História e o Futuro de Tecnologias que Expandem a nossa Mente), de 1985; Rheingold de novo, em Virtual Reality: The Revolutionary Technology of Computer-Generated Artificial Worlds – and How it Promises and Threatens to Transform Business and Society (Realidade Virtual: A Tecnologia Revolucionária de Mundos Artificiais Gerados pelo Computador – e como ela Promete e Ameaça Transformar os Negócios e a Sociedade), de 1991; ainda Rheingold, em The Virtual Community: Homesteading on the Electronic Frontier (A Comunidade Virtual: Estabelecendo Residência na Fronteira da Eletrônica), de 1993 – tudo isso está acontecendo diante dos nossos olhos. 

A escola está morta. Falta dar um tempo para que seja embalsamada ou simplesmente desmontada. 

3. HAVERÁ UMA REVOLUÇÃO NA RELIGIÃO? 

E a Religião? (Falo aqui exclusivamente do Cristianismo). 

O eixo de crescimento do Cristianismo mudou dos países ricos e desenvolvidos, principalmente na Europa e na América do Norte, para os países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, na América Latina, na África e na Ásia. Mesmo nessas regiões o eixo de crescimento mudou das igrejas e denominações históricas e tradicionais (o catolicismo, o luteranismo, o presbiterianismo, o anglicanismo / episcopalismo, mesmo as denominações metodistas e batistas) para as igrejas e denominações pentecostais ou neo-pentecostais: são estas as que crescem, por exemplo, aqui no Brasil. 

Nas denominações históricas e tradicionais só crescem aquelas que têm a ventura de encontrar (ou ir buscar) um pastor carismático, bom de câmera, com bom visual (relativamente jovem e bonito), bem falante, bom de púlpito, que atraia uma classe média sequiosa de um bom entretenimento com toques de psicoterapia e estímulo à auto-ajuda. 

Algo curioso está acontecendo com as denominações históricas e tradicionais. Elas não crescem, seja no número de igrejas, seja no número de membros dentro das igrejas existentes. O desafio deixou de ser crescer: passou a ser não diminuir, não acabar, não desaparecer… Sai o evangelismo, voltado para fora, para a conquista de novos membros, entra a revitalização, voltada para a tentativa de impedir que a igreja perca os membros que tem, que deixe de ter condições de sustentar um pastor próprio, e que, por isso, acabe por ter de fechar as portas, se não socorrida ou ajudada por igrejas em melhor situação financeira… 

Os bancos, quando fecham uma agência física, em regra ganham mais dinheiro. As igrejas, quando constrangidas a fechar uma igreja, não ganham nada: nem mais dinheiro, nem, muito menos, melhor reputação… Pelo contrário. 

O problema está no modelo… Na época da Reforma Protestante se enfatizou a ecclesia invisibilis, a comunidade (virtual) dos crentes (os ainda vivos, os já mortos, os que ainda vão nascer)… As igrejas protestantes eram simples, pequenas, sem luxo, desadornadas… Na parte mais radical da Reforma, os cultos eram feitos na casa dos irmãos… Não havia pastores. Ora um, ora outro conduzia o serviço. 

Hoje tudo isso pode ser feito através de comunidades virtuais, viabilizadas por tecnologia barata. A situação imposta pelos gestores da pandemia nos ensinou a conversar com os filhos, a celebrar aniversários e outras ocasiões, no plano virtual… Os cultos passaram a ser virtuais. No plano virtual temos muito mais escolha… Se hoje vai pregar um pastor esquerdista, que espinafra o nosso candidato a presidente, a gente assiste ao culto de uma outra igreja onde a mensagem do pastor é mais a gosto… 

Foi-se o tempo de grandes construções góticas, com salão social, edifício de oito andares para educação religiosa (Escola Dominical), estacionamento para no mínimo cem carros etc. Na hora que quisermos, é possível entrar no YouTube e ver cultos que falam à nossa alma; se gostamos do culto, podemos assistir aos cultos passados, sentados no sofá confortavelmente, em casa. Enquanto participamos do culto podemos comentá-lo, elogiá-lo ou criticá-lo.

Desigrejamento, um Cristianismo sem igrejas físicas, um Cristianismo basicamente virtual, formas de igrejamento doméstico, em que não faz sentido ser membro de uma igreja física, localizada em um determinado lugar, que tem um custo de manutenção significativo, e, por conseguinte, requer dízimos gordos… É isso que nos reserva o futuro. Quem viver, verá. O endereço de nossa igreja será https:// .

Em Salto, 23 de Setembro de 2022.



Categories: Virtual Churches, Virtual Communities, Virtual Reality

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