Encontrei, sem que o procurasse, um artigo meu, que publiquei em meu blog Liberal Space em 7.9.2010, dia em que completei 67 anos. Faz mais de nove anos. Foi o meu terceiro aniversário junto da Paloma.
Há matéria interessante no artigo. Há coisas de que nem me lembrava mais. E há coisas de que ainda não consigo me lembrar. E há coisas de que me lembro bem, e que um dia causaram sofrimento, mas hoje estão razoavelmente bem cicatrizadas, mais ou menos com as duas costelas que eu quebrei no ano passado, em 24.10.
Menciono no artigo “um de meus sobrinhos”, que não sei quem seria. Talvez fosse o filho de minha ex-cunhada, Fernanda. Ou então de meu ex-cunhado, Marco. Menciono também “meu filho” que os embates da vida não me permitem mais chamar assim – o mais certo, se escrevesse hoje, seria dizer “meu ex-enteado”. Na verdade, perdi, nesses embates, dois enteados (um casal), que eu chamava de filhos, porque viveram, desde pequenos, e durante 34 anos, comigo, e que me chamavam de pai. Não me chamam mais assim, nem eu a eles. Perdi um casal de enteados (fiquei, por assim dizer, “órfão” deles), mas ganhei duas enteadas, que vivem comigo há mais de onze anos e que eu considero filhas, sem reservas e qualificações. No caso da mais velha, a Bianca, convivemos por quase a metade da vida dela; no caso da Priscilla, a mais nova, já por mais da metade. Ambas são meninas-mulheres muito queridas, que eu aprendi a amar e que, por seu turno, aprenderam a me amar também, hoje não tenho nenhuma dúvida. (A propósito, acho que é mais fácil um padrasto ou uma madrasta chamar enteados de filhos do que vice-versa. Não sei por quê. Lembro-me de que, uma vez, à porta de uma loja no Embarcadero, em San Francisco, em 2009, a gente estava conversando com um vendedor que tentava nos empurrar alguma coisa, e ele perguntou à Priscilla, se referindo a mim: “Ele é seu pai?” – e ela respondeu: “Humm, mais ou menos”. Acho que é isso.)
Os que eu antes chamava de “meus netos”, porque eram filhos de enteados, também deixaram de sê-lo, tornando-se apenas “filhos de meus ex-enteados”. Por outro lado, ganhei outros netos, prontos. Não são filhos da Bianca e da Priscilla, porque elas não os têm ainda – nem sei se terão. São filhos trazidos para convívio familiar pelo casamento (em um caso) e o relacionamento firme (em outro) de minhas duas filhas, Andrea e Patrícia. Perdi três netos (dois meninos e uma menina), mas ganhei cinco (três meninas e dos meninos). Chamo-os de meninas e meninos apesar de que, em alguns casos, já sejam maiores de idade, ou quase. Olhando à coisa do ponto de vista meramente quantitativo, saí ganhando. Mas há mais do que o quantitativo nessas coisas delicadas da vida.
Gostei de ver o título do artigo anterior, “Gratidão”. Esse título prova que a gratidão é uma das virtudes que procuro cultivar, faz tempo.
Por falar em cultivar virtudes, lembrei-me do caso de Benjamin Franklin. Uma vez, quando ainda razoavelmente moço, ele viajou de Filadélfia para a Inglaterra – de navio, naturalmente, pois não havia aviões ainda. Na longa viagem – as viagens entre os dois países demoravam pelo menos duas semanas em meados do século 18 – ele resolveu criar para si próprio um programa de melhoramento e fortalecimento moral. Selecionou doze virtudes, as principais, no entender dele, que iria procurar cultivar, uma por mês, durante um ano. Assim, no final do ano, seria uma pessoa melhor no plano moral. Tentar desenvolver as doze de uma vez só seria quase impossível, concluiu ele: precisaria de foco..
Eram estas as doze virtudes (cito em Inglês – são quatro da manhã e eu estou com preguiça de traduzir o texto):
- TEMPERANCE: Eat not to dullness; drink not to elevation.
- SILENCE: Speak not but what may benefit others or yourself; avoid trifling conversation.
- ORDER: Let all your things have their places; let each part of your business have its time.
- RESOLUTION. Resolve to perform what you ought; perform without fail what you resolve.
- FRUGALITY. Make no expense but to do good to others or yourself; i.e., waste nothing.
- INDUSTRY. Lose no time; be always employ’d in something useful; cut off all unnecessary actions.
- SINCERITY. Use no hurtful deceit; think innocently and justly, and, if you speak, speak accordingly.
- “JUSTICE. Wrong none by doing injuries, or omitting the benefits that are your duty.
- MODERATION. Avoid extremes; forbear resenting injuries so much as you think they deserve.
- CLEANLINESS. Tolerate no uncleanliness in body, cloaths, or habitation.
- TRANQUILLITY. Be not disturbed at trifles, or at accidents common or unavoidable.
- CHASTITY. Rarely use venery but for health or offspring, never to dullness, weakness, or the injury of your own or another’s peace or reputation.
[As virtudes 5 e 6 são tipicamente calvinistas. Vide Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism].
Mas Franklin, antes de colocar em prática sua resolução, resolveu mostrar seu Dodecálogo a um amigo que era Quaker. Seu amigo leu, ponderou, e sugeriu que Franklin acrescentasse uma virtude à sua lista:
- HUMILITY.
Franklin, por seu lado, ponderou e concluiu que o pastor estava certo. Eis o que diz Franklin sobre a passagem de doze para treze virtudes:
“My list of virtues contained at first but twelve; but a Quaker friend having kindly informed me that I was generally thought proud, that my pride showed itself frequently in conversation, that I was not content with being in the right when discussing any point, but was overbearing and rather insolent, of which he convinced me by mentioning several instances, I determined endeavoring to cure myself, if I could, of this vice or folly among the rest, and I added Humility to my list, giving an extensive meaning to the word.”
O problema é que treze virtudes iriam quebrar o seu programa de praticar uma virtude por mês. Pensou, pensou e achou a solução: se praticasse uma virtude ao longo de cada grupo de quatro semanas, poderia encaixar as treze, posto que o ano tem 52 semanas e 52 dividido por 4 dá 13. Só um gênio para achar uma solução dessas. Mas achou, e deu certo.
Franklin fez um livrinho de planilhas, como esta, colocada a seguir, para garantir que cada virtude recebesse a devida atenção. O livrinho tinha 52 páginas, uma para cada semana do ano. (No caso, é a virtude “Industry” que está focada. Cada uma das treze virtudes era focada durante quatro semenas no ano — embora Franklin deixasse espaço para registrar que trabalhou também em outras virtudes que não era focadas naquela semana.
Vide o artigo “How to Develop Your Character – Benjamin Franklin’s Thirteen Virtues”, no blog Daring to Live Fully: L:ive the Length and Width of your Life, em
How to Develop Your Character – Benjamin Franklin’s Thirteen Virtues
Aqui vai o artigo de 7.9.2010, numa cor diferente:
Gratidão
Amanheceu chovendo.
Depois de uma eternidade sem chuva, em que a grama do sítio ficou russa, a estrada que leva a ele, uma poeira só, e o ar ficou tão seco que até as autoridades de saúde se preocuparam, choveu. Chove ainda.
O dia do meu aniversário trouxe a chuva tão esperada e desejada.
É verdade que, quando percebi, de manhãzinha, que estava chovendo forte, com direito a trovões e tudo, fiquei preocupado. Minha filha mais nova, meu filho e um de meus sobrinhos prometeram vir para cá, hoje. Fiquei com medo de que a chuva atrapalhasse os planos. Para as crianças que já estão aqui – há quatro, se a gente, contra a vontade delas, esticar um pouco a definição de criança – a chuva é uma prisão que as obriga a ficar confinadas, dentro de casa, num sítio em que há muito espaço aberto. Ainda bem que há o mezanino, onde montam quebra-cabeças (puzzles) e jogam Nintendo DSi.
Mas tomei a decisão de não ficar preocupado. Se a chuva dissuadir de vir aqueles que ainda não estão aqui, que seja. A chuva é bem-vinda. Ela é sinal de que a vida, por maior que tenha sido a devastação que o Inverno causou, continua embaixo da grama queimada, nos galhos sem folha de algumas árvores (como os meus plátanos), nas folhas amarronzadas pela poeira de outras. Resolvi adotar a filosofia do salmista: “Este é o dia que o Senhor nos deu: alegremo-nos e regozijemo-nos nele.” Ainda que seja um dia chuvoso.
Afinal de contas, hoje faço 67 anos, feliz e com boa saúde. Amando. Amando assim de paixão. Isso, em si só, já é um milagre, nessa idade. Há muitos que, ao chegaram à idade em que passam a ser considerados idosos, já se desiludiram da vida, já abriram mão de amar. Aposentam-se não só do trabalho: aposentam-se do amor e da vida. Poucos têm o privilégio de uma experiência como a minha – de vir a amar depois dos 60 anos, de se apaixonar numa idade já mais do que madura, como se ainda fossem adolescentes… (Leonel Brizola teve, Roberto Marinho também, para citar apenas dois casos conhecidos e notórios.) E, milagre maior ainda, tendo o privilégio de ser amado por alguém que arriscou tudo o que tinha para ficar comigo, do meu lado, curtindo, no mesmo passo, as urzes da jornada (como diz a poesia). E, além de tudo o mais, amando e sendo amado pelos filhos, pelos netos, pelos irmãos, pelos sobrinhos, pelos filhos dos sobrinhos, pelos primos, pelos filhos dos primos. (Entre os filhos estão, sem dúvida, aqueles que a lei considera enteados.) Por fim, amando e sendo amados por amigos queridos, quase irmãos. E não só sendo capaz de trabalhar, mas gostando dos desafios do trabalho, sentindo prazer em enfrentá-los. E, nos momentos de lazer, vendo e ouvindo os pássaros que, alegres pela chuva (e, imagino, pelo fato de estarem vivos), cantam, trinam, gorjeiam, chilreiam. Um bem-te-vi bemteveia agora aqui do lado na quaresmeira sem flores.
[A propósito, tenho pena dos dicionaristas. Para o Houaiss o bem-te-vi é apenas uma “ave passeriforme (Pitangus sulphuratus), da família dos tiranídeos, que ocorre do Sul dos Estados Unidos à Patagônia; com cerca de 22 cm de comprimento, bico longo e forte, coloração pardo-olivácea no dorso, amarela no ventre e cabeça preta e branca com uma mancha amarela no vértice”. Ele nem sequer diz que o bem-te-vi se chama assim no Brasil porque ele canta bem-te-vi. Na verdade, ele nem diz que o bem-te-vi canta…].
Dois dias felizes, porque ontem a Paloma e eu celebramos, com simplicidade, carinho e muito amor, na companhia da irmã dela e de dois irmãos meus, dois anos de vida em conjunto. Parece que foi ontem, e, no entanto, já se passaram dois anos. E, mais importante, parece que (como disse Vinicius, na Valsinha, que o Chico tão bem musicou) o mundo finalmente compreendeu e deixou o dia amanhecer em paz.
É isso. Fazia tempo que não escrevia assim com sentimento neste space. Faço-o hoje, em gratidão pelo amor, celebrado ontem, pela amizade, compartilhada nos dois dias, e pela vida, comemorada hoje — vida que me tem sido relativamente longa e bastante generosa. “Graças dou por esta vida”, dizia o hino que eu cantava na mocidade e de que meu pai tanto gostava. Continuo a cantá-lo. E a cantá-la, à vida.
Salto, 7 de setembro de 2010 (publicado em Liberal Space).
Salto ainda, 17 de novembro de 2019 (publicado em Chaves Space).
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