1. Aprendizagem, Lazer e Trabalho
Se a gente está aberto para as inúmeras oportunidades imprevistas de aprender que acontecem na vida, a gente aprende muitas coisas importantes sem ter a intenção de aprender e sem estar focado em aprender. Isso em geral acontece quando está fazendo outras coisas, voltadas para objetivos que não incluem aprender.
As “outras coisas” que a gente pode estar fazendo quando aprende algo dessa forma imprevista podem ser agrupadas em dois grupos principais:
a. Elas podem ser atividades de lazer, como, por exemplo, quando a gente está jogando conversa fora com os amigos no botequim, lendo sozinho no quarto por prazer, ouvindo música de maneira solitária e isolada com fones de ouvido, vendo um filme com a família na sala de estar ou de TV, viajando para curtir o tempo livre e descansar a mente, ou simplesmente se distraindo, se divertindo, brincando, de alguma outra maneira;
b. Elas podem, também, às vezes, ser atividades de trabalho, como, por exemplo, a gente exerce os deveres de empregado, de profissional liberal, de trabalhador autônomo, etc.
A aprendizagem, nesses casos, é subproduto, em geral inesperado, de alguma outra coisa que a gente está fazendo. As atividades de lazer em geral são agradáveis e prazerosas em si mesmas. Assim, a satisfação que elas nos trazem agem como nossa motivação (intrínseca) para nos engajar nelas. É difícil imaginar que alguém precise nos obrigar a participar delas ou que nos pague para fazê-lo.
As atividades de trabalho nem sempre são agradáveis e prazerosas em si mesmos. Boa parte das pessoas, talvez a maioria, não trabalharia, se isso não fosse necessário, obrigatório mesmo, diante das circunstâncias da vida: precisam de casa, roupa, comida… Poucos são os que adoram o trabalho que fazem e que se alegram, de manhã, por ter mais um dia de trabalho pela frente, e que fariam esse trabalho por prazer, mesmo que não fosse para ganhar nada. É por isso que o trabalho é em regra remunerado. A remuneração opera como a motivação (extrínseca) para o trabalho.
Neste artigo pretendo explorar a questão se a aprendizagem intencional que decorre do estudo (não a aprendizagem imprevista mencionada atrás) é mais parecida com o lazer ou com o trabalho para nós — para cada um de nós que está a ler este artigo.
2. Felicidade, Ações Obrigatórias e Ações Voluntárias
Lembro-me de uma ocasião, no início da década de 2000, quando eu estava em casa, assistindo um filme, tarde da noite, quando todos já tinham ido dormir, no que era então chamado Canal Telecine Classic (que era meu canal favorito de filmes). O filme era antigo, e eu, infelizmente, não me lembro do seu título, nem do nome dos atores, muito menos do nome do diretor. Só me lembro de um trecho de uma conversa em que um dos personagens pontificava e fazia um pequeno discurso, dizendo algo mais ou menos assim (que aqui transcrevo, naturalmente, de memória, não nas palavras do personagem — transcrevo apenas aquilo que me marcou de tudo o que o personagem discursador falou.) Eis, nas minhas palavras, um resumo daquilo que ele disse de importante.
A gente não é feliz porque está sempre sendo obrigado a fazer aquilo que não gosta de fazer. Estudar, quando se tem a idade de obrigatoriamente (por lei ou por necessidade) frequentar uma escola; e trabalhar, quando se torna adulto (a menos que sejamos um dos privilegiados que têm amplas condições de viver sem trabalhar). Como disse atrás, raro é o caso em que a gente trabalha por prazer, sem ser obrigado. Já estudar, há gente que o faça por prazer, sem ser obrigado. Mas, creio, é uma minoria.
Só nessas duas atividades, estudar e trabalhar, vai a maior parte do tempo útil e do esforço da gente durante mais de 60 anos, até que a gente se aposente (com uma aposentadoria ou uma poupança que nos permita viver de forma tranquila sem precisar trabalhar). Porque a gente, em geral, não gosta de fazer essas coisas, estudar e trabalhar, e preferiria sempre estar fazendo alguma outra coisa (que traga diversão, prazer, realização, felicidade), o grande desafio da escola e do trabalho é manter alunos e trabalhadores motivados.
Como dito atrás, no trabalho há um motivador importante (mas ele é extrínseco): o salário, que chega todo fim de mês, ou no final de cada metade do mês, ou no final de cada semana, ou no final de cada dia… Diversão, prazer e realização, e, portanto, felicidade, a gente encontra no fim do dia, depois do trabalho, no fim de semana, nos feriados, nas férias — e quando se aposenta (se é que tem algum dinheiro poupado e alguma vida pela frente)… Mas um trabalho em que não vemos sentido, de que não gostamos, e que, intrinsicamente, não é divertido, não nos traz prazer, não nos realiza, e não contribui para a nossa felicidade, sempre vai ser frustrante, até mesmo estressante, por melhor que seja o salário e os demais benefícios (os “fringe benefits“, como os designam os americanos: plano de saúde, por exemplo, ou, para os mais graduados, carro, casa, etc.)…
A escola não tem sequer um motivador desse tipo (extrínseco). Há as benditas notas, que tentam fazer o papel do salário do aluno, porque se vende a ele a ideia de que, com notas boas, depois de frequentar, com sucesso, escolas, faculdades e cursos bem conceituados, ele um dia arrumará um bom emprego e, finalmente, alcançará sucesso fora da escola, passando a receber um salário invejável… Mas a recompensa representada por esse motivador não é eficaz — primeiro, porque fica longe, no futuro distante; segundo, porque, hoje em dia, há muita gente que estudou por muito tempo em escola boa e tirou boas notas que não arruma um bom emprego, com excelente remuneração; e, terceiro, porque não há garantia de que um emprego que paga bem também seja, automaticamente, acompanhado de diversão, prazer, realização e, por conseguinte felicidade.
Não encontrando diversão, prazer, realização e felicidade nem na escola, nem no trabalho, o aluno e o trabalhador só encontram alguma felicidade nos momentos que vêm depois da escola e do trabalho: para o aluno, à noite, no fim de semana, nos feriados, nas férias; para o trabalhador, nas mesmas ocasiões e na aposentadoria, se ela for minimamente decente e generosa (vale dizer, justa — o que, para a maioria, raramente é o caso). (Por isso há tantos “nem … nem … hoje”, gente que, podendo, opta por nem estudar nem trabalhar).
A única solução para esse problema, dizia o personagem do filme do Telecine, é a gente, quando aluno, só estudar e, consequentemente, aprender aquilo que corresponde aos nossos interesses, aos nossos gostos, às nossas paixões — porque esse estudo e essa aprendência já vêm carregados das positividades da diversão, do prazer, da realização, da felicidade. Mas, para isso, precisaríamos, ou de uma escola radicalmente nova, que mereceria até ter um outro nome, ou fora da escola, de algum tipo de unschooling radical, que nem de longe se confunde com home schooling, que é uma escolinha em casa… E, quando concluir a escolaridade, só trabalhar, e, consequentemente, receber alguma remuneração, fazendo aquilo que a gente gosta de fazer e para o qual tem talento e aptidão natural, que foram expandidas e enriquecidas com as aprendências obtidas nessa escola nova e radicalmente diferente… Mas para que isso aconteça, teremos de criar um mundo de negócios novo, que não nos roube a liberdade, ou ser um profissional livre (mais do que um profissional liberal)…
Tudo isso eu aprendi, ou, pelo menos, comecei a aprender, vendo um filme, e fui aprendendo aos poucos, tentando, gradualmente, aplicar esses princípios à minha vida, até virar um proponente de uma educação centrada no desenvolvimento humano, na realização de nossos sonhos e projetos de vida, que acontece o tempo todo, desde que nascemos, a qualquer momento (anytime), em qualquer lugar (anywhere), através de todo e qualquer método, no estilo que nos for mais eficaz (anyhow), até que morramos (lifelong) — e que é também uma educação ativa (hands on & minds on), desinstitucionalizada (unschooling), em que os aprenderes acontecem quando são necessários (just in time) e pelo tempo e na quantidade que forem necessários (just enough – not less but not more either)…
Lendo ontem (12.5.2021) um livro magnífico de Clayton M. Christensen, How Will You Measure Your Life?, eu vi quase todas essas ideias apresentadas com rigor e fundamentação, fazendo-me feliz por ter chegado a elas tateando, devagar, aos poucos, sem encontrá-las prontas e sistematizadas. Christensen é o autor dos também magníficos The Innovator’s Dilemma: When New Technologies Cause Great Firms to Fail e Disrupting Class: How Disruptive Innovation Will Change the Way the World Learns.
No primeiro livro mencionado (que não foi o primeiro escrito, pelo contrário), Christensen cita Steve Jobs, que eu aqui traduzo livremente, não verbatim. Afirmou Jobs duas coisas importantes:
a. o único jeito de ser feliz e realizado na vida é fazendo algo (estudo ou trabalho, ou mesmo lazer) que faz sentido para você e que você considera importante;
b. o único jeito de fazer o que faz sentido para você e que você considera importante, é escolhendo fazer aquilo que você ama fazer e faz bem — não tentando amar e fazer bem o que você é obrigado a fazer.
Esse é o único caminho. Não há outro.
Sir Ken Robinson, falecido recentemente, em seu livro The Element, bate nessa mesma tecla: só alcança realização e felicidade quem é capaz de fazer com que sua vida gire em torno da confluência e união de seus interesses e paixões (aquilo que você adora fazer) e seus dons e talentos (aquilo que você faz especialmente bem). Se você conseguir fazer isso, você estudará e trabalhará com prazer — e o seu estudo e o seu trabalho se confundirão com seu lazer.
3. Desestatização e Desescolarização da Educação
Houve tempo em que o casamento era o caminho obrigatório para os jovens e os pais escolhiam com quem a gente ia se casar — os próprios nubentes não tinham o direito de se casar ou não, ou, casando-se, de escolher com quem. Hoje em dia, exceto entre os nobres, os muito ricos, os muito poderosos (como os reis e os políticos), isso, felizmente, não acontece mais. A gente se casa se quer e com quem quer. Alcançou-se a plena liberdade de consorciar-se maritalmente. Qualquer a escolha feita, não se casar ou casar-se, e com quem, a responsabilidade é dos envolvidos, e, havendo erro nas decisões feitas, a responsabilidade de corrigi-los e, se for o caso, tentar de novo também é de cada um, de ninguém mais. Essa parece uma questão pessoal, mas é estatal: o Estado, atropelando até mesmo a Constituição, permitiu que o casamento possa acontecer, até mesmo entre mesmos do mesmo sexo, sem necessidade de validação pelo Estado (as chamadas “uniões estáveis”) ou por uma instituição religiosa (cuja participação, se um dia foi obrigatória, faz tempo que não é mais, o que, neste caso, é um progresso (nos outros, tenho cá minhas dúvidas).
Houve tempo, e ainda estamos nele, em que os pais decidiam pelos filhos se eles iriam estudar e, em caso positivo, estudar o que, e a que tipo de trabalho iriam se dedicar (em geral o negócio da família). As próprias pessoas, quando estudantes e, mesmo depois, quando trabalhadoras não tinham esse direito.
Aos poucos, o Estado foi chamando a si o direito de decidir pelos pais e pelas próprias pessoas, que todos iriam, obrigatoriamente, estudar — e estudar, não em casa, ou da maneira que os pais ou as pessoas escolhiam, mas na escola, de preferência em escola do estado. Inicialmente, seriam quatro anos de escolaridade obrigatória. Depois oito, em seguida nove, depois doze, agora quatorze. Inicialmente as horas obrigatoriamente passadas na escola eram três; depois se tornaram quatro, cinco, seis, sete, oito — o dia inteiro. Inicialmente, os dias letivos do ano eram 140, depois 160, 180 e agora são 200, aqui no Brasil — havendo quem já propugne por 220 (como na Coreia do Sul) e até mesmo 240. (Se chegarmos a 240, e excluirmos do ano os 52 sábados e 52 domingos, mais 21 feriados, os alunos não terão mais férias escolares: estarão na escola todo dia, menos sábados, domingos e feriados. Estarão em pior situação do que os trabalhadores, que, pelo menos, têm trinta dias de férias.)
Além de decidir, pelos pais e pelos alunos, quantos anos, quantos dias e quantas horas serão obrigados a permanecer na escola, o Estado chamou a si o direito de definir o que eles irão estudar lá e como. Primeiro, veio a definição das matérias obrigatórias, na forma currículos mínimos, que cresce a cada dia (os mínimos se maximizam, sendo esta uma das razões para aumentar o número de anos, dias e horas na escola). Depois veio o conteúdo dessas matérias, e os parâmetros sob os quais deveriam, ser abordadas, para não falar no número mínimo de horas a ser dedicado a cada matéria e das instruções específicas das metodologias a serem adotadas, desde para a alfabetização até o final do Ensino Básico. Os pais e os alunos perderam sua liberdade — mas até mesmo as escolas estão perdendo a sua para os burocratas bem intencionados, monitorados pelos sindicatos e associações de profissionais da educação.
Já alcançamos a plena liberdade de nos consorciar maritalmente. (Plena liberdade, em termos, pois na pauta dos radicais há muita coisa mais: casamento com mais de um cônjuge ao mesmo tempo, casamento com crianças, casamento com parentes próximos, casamento com animais, e o cúmulo, casamento consigo mesmo…). Precisamos, agora, lutar pela plena e total liberdade de estudar e aprender, sem intervenção do Estado (desestatização total da educação) e sem a participação necessária da escola (desescolarização da educação). A escola poderá existir para quem quer, mas deixará de ser obrigatória / compulsória / regulada e fiscalizada pelo Estado. Ela deixará de ter um mercado cativo e os professores deixarão de ter uma clientela cativa para doutrinar.
Que Deus nos ajude.
Em Salto, 13 de Maio de 2021
Eduardo Chaves
[Este artigo é uma elaboração feita em cima dos slides de uma palestra que dei, em 2005, em um evento da Telemar, e a seu convite, na PUC-Rio.]
Categories: Liberalism
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