A Educação e a Escola – texto de 2008

Este texto foi escrito, em parte, com base numa conversa com Ricardo Semler em 23 de Julho de 2008 — ontem, posto que escrevo este post em 24 de Julho desse ano.

A escola convencional, que até hoje persiste, é uma instituição totalmente alicerçada no passado.

O fato de que ela dá férias prolongadas aos seus alunos no verão é reflexo de uma era pré-industrial, quando a agricultura dominava a vida. Na época da colheita, os alunos precisavam ajudar os pais no campo – daí, as férias mais longas nesse período.

A duração da aula, fixada em cerca de 50 minutos (ou 40, quando à noite), se deve ao fato de que, antigamente, se considerava que o “attention span” das crianças não passava de mais ou menos isso. Hoje, outros estudos mostram que a televisão, as empresas de marketing etc., calculam o “attention span” dos adultos em cerca de apenas oito minutos. Por isso os segmentos das novelas e dos noticiários são quebrados em vários períodos de mais ou menos oito minutos – e os vídeos institucionais raramente ultrapassam essa duração. E, no entanto, uma criança jogando um videogame novo, desses em que você pode progredir para estágios cada vez mais avançados, fica horas e horas jogando, sem perder a concentração… Dependendo da idade da criança, e do grau de liberdade que tem em casa, pode às vezes passar a noite inteira jogando.

O tamanho da sala de aula tradicional – para no máximo 40 alunos, por volta disso – representa o espaço que podia ser alcançado pela voz humana desassistida da tecnologia (sem microfones e amplificadores de som). Hoje em dia, com microfones e telões, os malfadados “cursinhos pré-vestibulares” têm salas de aula que comportam de 250 alunos para cima…

Os professores, todos especialistas, refletem um período em que se acreditava que a verdade estava na especialização e que era preferível saber quase tudo sobre quase nada do que saber um pouco sobre um monte de coisas.

A retenção média pelos alunos daquilo que o professor diz numa aula normal de uma escola convencional é, dizem os estudiosos, 6%. Isto significa que na escola há uma perda de 94% naquilo que o professor diz, do material que ele apresenta, quando considerada a retenção do material na memória do aluno.

Nenhuma instituição com uma taxa de perda ou rejeição de 94% sobrevive – exceto a escola. Manter esse sistema hoje é manter o mais incompetente sistema que jamais se criou. Ele nega tudo o que sabemos sobre como crianças, adolescentes e jovens aprendem – na verdade, sobre como qualquer um aprende, até mesmo adultos e velhos. A única razão pela qual a escola tem se mantido, mesmo com tanta ineficiência, é que há grupos políticos, em algumas situações, fortes e poderosos, em outras, meramente bagunceiros e barulhentos, que têm interesse em usar a escola obrigatória para ter, ao seu dispor, uma audiência cativa que esses grupos querem doutrinar, cuja cabeça eles querem fazer, formar, moldar, engessar — para depois usar os donos das cabeças como massa de manobra…

A aprendizagem é fruto da curiosidade, e a curiosidade, do interesse. Basta assistir ao lindo filme Céu de Outubro (October Sky) para se dar conta disso. O livro e o filme demonstram uma perceptividade e sensibilidade pedagógica dificilmente encontrada em manuais de Pedagogia… Quando temos interesse por alguma coisa, e temos a liberdade de explorá-la, não há problema de falta de motivação, de perda de atenção, de attention span curto, de Attention Deficit Disorder… Mas explorar é algo ativo, diferente de simplesmente ficar quieto e prestar atenção no que se vê, ouve ou lê… Se a curiosidade e o interesse da criança tiverem a sorte de topar com a paixão pelo tema e com o know-how necessário para explorá-lo por um adulto, será um “match perfeito”. Nada impedirá a aprendizagem da criança nesse caso.

Estudos têm mostrado que, quando nós, adultos, olhamos para trás para identificar os mestres que fizeram uma diferença em nossa vida, encontramos no máximo uns três, talvez uns quatro – cinco ou seis se tivemos muita sorte. E esses não são lembrados pelo conteúdo que nos ensinaram. São lembrados, primeiro, porque tinham paixão por alguma coisa. São lembrados, também, pelo fato de que essa paixão os levava a dedicar boa parte de sua vida a essa coisa, a explorá-la de todos os ângulos. A paixão, a sede de conhecer mais sobre o objeto da paixão, e a competência decorrente tinham o poder de contagiar as jovens mentes que tinham contato com eles.

Eis o que diz sobre esse assunto, por exemplo, John Steinbeck, escritor americano, Prêmio Nobel de Literatura:

“O bom professor, como o grande artista, é raro… Encontramos pouquíssimos deles na vida. Se você tem sorte, ao olhar para trás, descobre uns dois ou três deles. Eles não lhe passaram informações. Eles não lhe disseram o que fazer. Eles lhe abriram a porta de um novo mundo e o ajudaram a entrar nele, acreditando que aprender é sempre uma aventura fascinante, porque é assim que a gente constrói a própria vida.”

Crianças curiosas, interessadas, motivadas não precisam que ninguém lhes ensine nada. Aprendem por si só, quando são movidas pelo interesse e pela curiosidade. A motivação aparece naturalmente. E é assim que muitas delas são, com frequência, contagiadas pela paixão, pelo entusiasmo, pelo conhecimento, pela competência de alguém. Educar não é como encher um balde, nem como fazer algo parecido com uma transferência bancária, só que não de dinheiro, mas de conhecimentos, habilidades e valores (na sugestão de Paulo Freire). Educar é mais como alumiar um caminho que está escuro, como acender uma lanterna, ou, preferivelmente, pôr fogo no pavio de uma vela que, por sua vez, pode, um dia, acender uma outra, e assim por diante… (A imagem é de William Butler Yeats).

E crianças não precisam aprender a aprender. Elas vêm “de fábrica” com essa capacidade. Aprendem, nos primeiros dias de vida, a reconhecer a face, a voz, até o cheiro da mãe, do pai, dos familiares próximos, sem que ninguém lhes ensine nada; aprendem a entender a fala humana e, no devido tempo, a falar, sem que ninguém lhes ensine nada; aprendem a andar, a correr, a pular, a saltar, a subir e descer escadas, sem que ninguém lhes ensine nada. Basta querer – e querer elas cedo ou tarde querem, se a escola tradicional não matar de vez a sua curiosidade (como sugeriu o grande Sir Ken Robinson, infelizmente falecido recentemente).

Summerhill, Sudbury, Escola da Ponte, Lumiar… Todas estas são escolas criadas dentro dessa visão. Admiro todas elas. Mas, de todas elas, gosto mais da Sudbury, por ser a mais radical. Infelizmente, o meu amigo Daniel Greenberg, o seu fundador, faleceu recentemente, em 2.12.2021. Mas quanto ao nome, prefiro a Lumiar… A Paloma e eu tivemos o privilégio de trabalhar lá. E foi quando era Presidente do Instituto Lumiar que tive a conversa que relato no primeiro parágrafo.

Em Salto, 24 de Julho de 2008; pequena revisão em 14 de Novembro de 2022.

[PS de 14.11.2022: Os meses de Julho, Agosto e Setembro de 2008 foram muito importantes e decisivos para mim… E para a Paloma. Foi em 6.9.2008 que começamos a viver juntos. Fez quatorze anos há dois meses e pouco atrás. Nossa vida comum vinha sendo construída, pouco a pouco, tijolinho por tijolinho, há alguns anos, sem que a gente se desse claramente conta desse fato, Essa construção se dava nos nossos blogs, nas redes sociais (Orkut, Facebook), nos serviços de trocas de mensagens instantâneas (MSN Messenger) e no nosso trabalho na Microsoft e na Lumiar, desde, pelo menos, 2004.]



Categories: Deschooling, Desescolarização, Educação, Education, Schooling, Schools, Unschooling

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