A Filosofia do ‘Como Se’

Quando fiz meu Doutorado na Universidade de Pittsburgh, nos anos de 1970-1972, fiz dois cursos sobre Emanuel Kant (1724-1804), o mais famoso filósofo alemão do século 18 e um dos mais famosos do mundo.

Um dos dois cursos, ministrado por uma professora bem jovem (só dois anos mais velha do que eu: nasceu em 1941, e, pelo que consta, ainda está viva), chamada Marilyn Frye, consistiu de aulas bastante convencionais, mas cobriu o essencial das ideias de Kant na epistemologia, metafísica, ética e filosofia da religião. O doutorado de Frye foi em 1969, o meu em 1972. Quando fiz o curso com ela fazia apenas dois anos que ela havia concluído o seu doutorado. Eu não sabia. Não havia como saber então, mas descobri recentemente, que ela se tornou uma das mais famosas filósofas do Feminismo. Fiz um sinal da cruz quando fiquei sabendo…

O outro curso, listado como avançado, foi uma série de brilhantes preleções por Wilfrid Sellars (1912-1989), a estrela do Departamento de Filosofia da universidade, que esta, pouco tempo antes, havia “roubado” da Universidade Yale (consta que, à época, por um salário anual de 250 mil dólares, uma verdadeira fortuna naquela época — valor que passa de 1.900.000 dólares no câmbio de hoje, quase 160 mil dólares por mês!). Este curso foi algo espetacular. Mas era meramente preleção: não se admitia nenhuma discussão ou interação com o professor. Isto era passado, de boca em boca, entre os alunos, e foi confirmado um dia quando, ao término da aula, um aluno corajoso se aventurou a abordar Sellars e lhe perguntou: “Professor, may I ask you a question?” – e ele respondeu, seca e simplesmente com um sonoro, “No”, sem oferecer nenhuma justificação, e, sem nenhum constrangimento, saiu da sala. Fiquei chocado. Mas não o suficiente para fazer algo equivalente a um sinal da cruz – isso eu, naquela época, nunca faria. (Hoje faço mais para azucrinar minha mulher, que acha que um protestante nunca faria um sinal desses. Mas voltemos ao caso que eu contava.) Sellars, que era filho de um filósofo americano razoavelmente famoso, Roy Wood Sellars, nasceu em 1912 e morreu em 1989 (como já indicado). Um artigo publicado no New York Times, citado pela Wikipedia em Inglês, no verbete sobre ele, afirma que Sellars, o filho, “revolutionized both the content and the method of philosophy in the United States” [revolucionou o conteúdo e o método da filosofia nos Estados Unidos] na segunda metade do século 20. Fiz também um seminário avançado com Sellars sobre “Critical Issues in Metaphysical and Epistemology”. Nesse seminário fiz uma apresentação e acabei por escrever um trabalho sobre o tema “The Cognitive Status of Religious Discourse in the Early Ludwig Wittgenstein”. O foco do trabalho foi o livro Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein (1889-1951), escrito durante a Primeira Guerra, quando ele estava lutando, e publicado em 1921, em Alemão, com o título de Logisch-Philosophische Abhandlung. A tradução para o Inglês, com o título em Latim, feita por C.K. Ogden, foi publicada no ano seguinte (1922). Voltando a Wilfrid Sellars, foi um raro privilégio estudar com ele, que acabou me honrando ao aceitar fazer parte de minha banca de doutoramento, a convite de meu orientador William W. Bartley, III. Sellars foi o membro sênior da banca, e os demais membros o tratavam com indisfarçável deferência. Foi ele que, depois da deliberação da banca, saiu da sala e foi me buscar no corredor, fazendo um sinal de vitória com as duas mãos, uma segurando a outra, acima da cabeça. Morro de orgulho, ainda hoje, só de lembrar. Mas vamos ao que importa.

O mais importante, para mim, no curso de Sellars sobre Kant foi que eu travei contato com as ideias um filósofo alemão, chamado Hans Vaihinger (1852-1933), especializado em Kant, que escreveu um livro (publicado em 1911, um ano antes de Sellars nascer) chamado Die Philosophie des Als Ob (A Filosofia do Como Se [As If]). Nesse livro, Vaihinger, seguindo Kant, argumenta que os seres humanos nunca serão capazes de conhecer a realidade, em si, aquilo que Kant chamou de “noumena” (as coisas como elas são em si mesmas), só tendo acesso a “phenomena” (as coisas em sua aparência, ou a aparência das coisas, uma vez filtradas pelos nossos órgãos dos sentidos). Não tendo acesso à noumena, não somos capazes de comparar os phenomena com os noumena – e ficamos até mesmo sem saber se, por detrás das aparências, realmente há alguma coisa, em si, ou se tudo não passa de alucinação… Por isso a única alternativa que nos sobra é construir sistemas de ideias e presumir (sem, nunca, ser capazes de demonstrar ou provar) que eles correspondem à realidade (ou se há alguma realidade atrás deles). Vaihinger vai além e chama esses sistemas de ideias de ficções (ficta), e afirma que, como não há alternativa melhor, nós nos conduzimos no mundo “como se” nossas ficções fossem realidade — fazendo de conta, por assim dizer. Como Vaihinger indica no subtítulo de seu livro, traduzido para o Inglês apenas em 1924 (pelo mesmo tradutor do Tractatus de Wittgenstein, C.K. Ogden), ele ali trata das ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade. A ciência empírica está incluída entre essas ficções. A religião, talvez com maior razão, também. Digo “talvez com maior razão” porque na ciência, pelo menos, a gente parece ver coisas reais (mas sabe que são apenas aparências, se tanto, das coisas reais). Na religião, exceto em casos raros de epifanias e experiências visionárias, não. Por isso a fé. Alguns amigos e seguidores de Kant, a maior influência filosófica sobre Vaihinger, se tornaram fideístas, e não idealistas ou racionalistas. O mais famoso dele foi o amigo e colega dele, Johann Georg Hamann (1730-1788), que foi quem introduziu Kant ao ceticismo de David Hume (1711-1776), filósofo escocês sobre o qual escrevi minha tese de doutoramento. Kant deu crédito a Hume de havê-lo despertado de sua “sonolência dogmática” e o induzido a enveredar pelos meandros de sua “filosofia crítica”. 

Como, naquela época, de 1970 a 1972, eu estava no auge de meu ceticismo religioso, achei as ideias de Vaihinger fantásticas, uma solução para meus problemas e minhas dúvidas, causadas em grande medida por David Hume. Concluí eu que nossas ideias, tanto as científicas como as religiosas, não passam de ficções que nós construímos para nos dar a impressão de que conhecemos a realidade, seja esta empírica, ou seja ela também espiritual. E eu podia continuar a estudar a teologia, disciplina pela qual era apaixonado (continuo sendo, atrás apenas da filosofia e da história), com a mesma devoção que Einstein estudava a sua física, pois ambas, a teologia e a física, estavam no mesmo plano epistêmico: ambas eram ficções, isto é, construções intelectuais humanas, não revelações divinas. A verdade dessas construções intelectuais, isto é, sua correspondência com a realidade, nós não temos a menor condição de demonstrar ou provar. A postura adequada, numa situação assim, é a da humildade e modéstia intelectual — não a atitude arrogante, cheia de soberba dos que imaginam que sabem tudo, com a maior certeza. Nossas construções intelectuais na ciência, na filosofia e na teologia pertencem ao mesmo gênero da literatura, que é admitidamente ficção, mas que não deixa de ser importante, por causa disso. Na realidade, Mário Vargas Llosa, o grande autor peruano, afirma, em seu livro La Verdad de las Mentiras, que há mais verdade na literatura, que se reconhece como ficção, do que na ciência, na filosofia, na teologia, na história, no jornalismo, que pretendem passar por verdades. . . 

Hoje encontrei na Amazon a tradução para o Inglês do livro de Vaihinger, em formato ebook Kindle, pela bagatela de 1,99 dólares – dez reais, antes do besteirol que o Lula anda vomitando. As versões impressas têm preço na casa dos cem dólares. Thank God for Jeff Bezos, mesmo com a esquerdice dele. Já estou lendo livro… 

Aproveito para citar uma passagem de Hans Vaihinger, no prefácio à tradução do seu livro para o Inglês, The Philosophy of As If (feita, como já disse, por C.K. Ogden, em 1924, ano do bicentenário do nascimento de Kant, e publicada no início do ano seguinte): 

Fictionalism does not admit the principle of Pragmatism which runs: “An idea which is found to be useful in practice proves thereby that it is also true in theory, and the fruitful is thus always true.” The principle of Fictionalism, on the other hand, or rather the outcome of Fictionalism, is as follows: “An idea whose theoretical untruth or incorrectness, and therewith its falsity, is admitted, is not for that reason practically valueless and useless; for such an idea, in spite of its theoretical nullity may have great practical importance. But though Fictionalism and Pragmatism are diametrically opposed in principle, in practice they may find much in common.

Em Português: 

“O Ficcionalismo [o nome que Vaihinger dá à sua filosofia] não admite o princípio do Pragmatismo, que afirma: ‘Uma ideia que se descobre útil na prática prova, assim, que também é verdadeira em teoria, pois as ideias que são frutíferas são sempre verdadeiras’. O princípio do Ficcionalismo, por outro lado, ou, melhor dizendo, o resultado do Ficcionalismo, é este: ‘Uma ideia que se descobre ser teoricamente errônea ou incorreta, e, por conseguinte, falsa, não é, em virtude desse fato, sem valor ou inútil. Essa ideia, embora possa ser nula do ponto de vista teórico, pode ter grande importância prática.’ Assim, embora o Ficcionalismo e o Pragmatismo defendam princípios diametricamente opostos, na prática podem se encontrar muitas vezes do mesmo lado.” [Tradução minha.]

Termino, imodestamente, citando a mim mesmo. A fonte é minha tese de doutoramento, concluída e defendida em 8 de Agosto de 1972 (cinquenta anos atrás, este ano). O título foi David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought (Ann Arbor Microfilms, Ann Arbor, 1972). Disse eu, no final da dissertação, o seguinte:

“David Hume was the first major intellectual figure in modern times to attack and reject, in a systematic and thorough fashion, those that were considered the only two ‘sources’ or grounds of theological insight: reason and revelation. What was the aftermath of this devastating attack? Since prior to Hume’s time reason and revelation were regarded as virtually the only ‘sources’ or grounds of theology, there were only two intellectually reputable alternatives for those who accepted Hume’s critique as valid: one would have either to reject the theological enterprise as altogether groundless, or to find a new ‘source’, or a new ground, for it. Hume chose the first alternative. Kant, who endorsed most of Hume’s criticism of reason-based natural theology, and who also rejected revelation as such, chose the second alternative, [ . . . ] relating the ground of belief in God not to pure, theoretical, or speculative reason, but to practical reason, that orients and governs morality — basically, to our moral experience of the categorical imperative. Kant’s emphasis on morality was to become very influential upon nineteenth-century Liberal Theology. [ . . . ] I mentioned above that for those who accepted Hume’s conclusions there were only two intellectually reputable alternatives: either to reject the theological enterprise or to find a new ‘source’ or ground for it. If one eliminates the underlined expression, there will still be another alternative: to claim that religion is to be accepted on the basis of blind faith. There had been people who rejoiced in religion’s irrationality since the beginning of Christianity (such as Tertullian, who rejoice in the physical distance and the intellectual differences between Jerusalem and Athens). Some of the Protestant reformers did just that, and Pierre Bayle claimed [ . . . ] that only by believing the irrational could faith really maintain its identity as faith: nobody has faith in that which is reasonable to accept. Unpalatable as this suggestion may seem to many, especially to eighteenth-century people who had been hearing about ‘the reasonableness of Christianity’ (the phrase belongs to John Locke) for over a century, there were those who eagerly embraced this alternative. J. G. Harman did so, and even hailed Hume as the patron saint of his irrational fideism. But Sören Kierkegaard, in the nineteenth century, is, perhaps, the most important representative of this trend. [ . . . ] On the whole, one can say that most of the creative, innovative and original theological work, in post-Humean times, was done by those who concurred with most of Hume’s criticisms, but wanted to make theology an intellectually respectable discipline, and who had, therefore, to devise a new way of doing theology — as did F.D.E. Schleiermacher, for instance.”  [pp.607-610.]

Traduzo:

“David Hume foi a primeira figura maior do cenário intelectual do mundo moderno a atacar e rejeitar, de forma sistemática e completa, aquelas que eram consideradas as duas únicas ‘fontes’ de insight ou fundamentos de inspiração teológica: razão e revelação. Qual foi o resultado desse ataque devastador? Posto que, antes da época de Hume, razão e revelação eram consideradas como as únicas ‘fontes’ ou fundamentos do empreendimento teológico, restaram apenas duas alternativas merecedoras de respeito intelectual para aqueles que aceitavam as críticas de Hume como válidas: ou rejeitar o empreendimento teológico como sem fundamentação intelectual, ou encontrar uma nova ‘fonte’, ou um novo fundamento intelectual, para esse empreendimento. Hume escolheu a primeira alternativa. Kant, que endossou a maior parte das críticas que Hume fez à teologia natural baseada na razão, e que rejeitava também a revelação, enquanto tal, escolheu a segunda alternativa, [ . . . ] relacionando o fundamento da crença em Deus não com a razão pura, teórica e especulativa, mas com a razão prática, que orienta e governa a moralidade — basicamente com nossa experiência do imperativo categórico.  A ênfase que Kant colocou na moralidade como o único fundamento intelectualmente respeitável para a crença em Deus veio a exercer enorme influência sobre a Teologia Liberal do século 19. [ . . . ] Mencionei atrás que para aqueles que aceitavam as conclusões de Hume havia apenas duas alternativas merecedoras de respeito intelectual: ou rejeitar o empreendimento teológico por carecer de base intelectual respeitável, ou encontrar uma nova ‘fonte’ ou um novo e respeitável fundamento intelectual para esse empreendimento. Se se abandonar a expressão sublinhada, haverá uma outra alternativa: reivindicar a tese de que a religião deve ser aceita com base em uma fé cega. Sempre houve pessoas que se regozijaram com a irracionalidade da religião, desde o início do Cristianismo (como Tertualiano, que celebrou a distância física e a diferença no clima intelectual existente entre Jerusalém e Atenas). Alguns reformadores protestantes seguiram essa tendência. Pierre Bayle afirmou [ . . . ] que é apenas acreditando naquilo que é irracional que a fé pode manter o seu caráter distintivo de fé: ninguém precisa ter fé para acreditar naquilo que é razoável aceitar. Embora essa sugestão possa parecer pouco palatável, especialmente para os cidadãos do século 18 que vinham ouvindo, o tempo todo, uma defesa da ‘Razoabilidade do Cristianismo’ (a frase é de Locke), apareceram vários intelectuais que abraçaram essa alternativa. J. G. Harman foi um deles, e ele até mesmo festejou David Hume como o santo padroeiro do seu fideísmo irracional. Mas Sören Kierkegaard, no século 19, talvez seja o representante mais importante dessa tendência. [ . . . ] No todo, é possível afirmar que a maior parte da obra teológica criativa, inovadora e original a surgir, depois de Hume, principalmente no século 19, foi feita por teólogos que concordavam com as críticas de Hume, mas tentaram fazer teologia de uma forma intelectualmente respeitável, e que tiveram, portanto, que descobrir uma nova forma de fazer teologia — como é o caso, por exemplo, de F.D.E. Schleiermacher.” [pp.607-610.]

É incrível como algo acidental e fortuito, como achar um livro dentre os milhões de livros que a Amazon comercializa, pode desencadear uma série de ideias com as quais a gente lidou há mais de 50 anos, e que permanecem na lembrança — e que ainda parecem relevantes neste novo milênio, o terceiro da era cristã. 

Em Salto, 12-13 de Novembro de 2022. 



Categories: Ficção, Filosofia, Verdade

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Twitter picture

You are commenting using your Twitter account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s

%d bloggers like this: