1. Introdução à Discussão do Conservadorismo
No artigo anterior [1], discuti, basicamente, os conceitos de Liberalismo, Libertarianismo e Educação – alguns deles com suas variantes (Liberalismo Clássico e Liberalismo Americano, Libertarianismo Anárquico, Anarco-Socialismo Socialista, e Anarquismo Cristão). Toquei de leve nos conceitos de Progressivismo, Construtivismo e Construcionismo (que considerei, especialmente no caso da dupla final de conceitos, equivalentes um ao outro, considerando também a dupla como equivalente ao conceito de Progressivismo). Tudo o que disse pode, naturalmente, ser questionado, e há inúmeros autores, entre os quais alguns que admiro bastante, em geral porque com eles aprendi bastante, que questionam essas equivalências, mas eu as mantenho porque quero discutir a questão em grandes traços, naquilo que me parece ser a sua essência, não sucumbindo às minudências das discussões acadêmicas.
Neste artigo vou discutir, de forma igual, o conceito de Conservação e o “ismo” correspondente, o conceito de Conservadorismo – sendo obrigado a envolver, na discussão os conceitos de Progresso, Inovação, Reforma, Transformação, Revolução e os “ismos” correspondentes (dos quais o Progressivismo já foi rapidamente introduzido no artigo anterior).
Mas por que trazer o Conservadorismo à baila? A razão é simples – embora vá levar um pouco de tempo para descrevê-la e explicá-la.
2. A Aliança entre Liberais e Conservadores
A partir de 1929, os americanos (e muitas outras nações com eles) viveram a chamada Depressão de 1929, encerrando, nos Estados Unidos, um período de mais de cinquenta anos de crescimento agrícola, industrial e econômico, e passando a enfrentar sérias dificuldades econômicas. Franklin Delano Roosevelt, político do Partido Democrata, tradicionalmente liberal, que era governador do estado de New York desde 1929, candidatou-se à Presidência, no ano 1932, prometendo frear a depressão e trazer a nação de volta ao crescimento econômico. Foi eleito para um mandato de quatro anos, que começou em 1933. Depois, foi eleito mais três vezes, em 1936, 1940, e 1944, para mandatos que se iniciaram, respectivamente, em 1937, 1941 (ano em que os Estados Unidos entraram na guerra) e 1945, ano em que a Segunda Guerra Mundial terminou – estando Roosevelt já morto [2]. A partir de seu primeiro mandato Roosevelt (chamado de FDR) combateu a Depressão – e o fez conseguindo do Congresso Americano poderes excepcionais (muitos dos quais violavam a Constituição Americana) destinados a ressuscitar a economia a partir da iniciativa e do protagonismo do Estado, mediante medidas emergenciais, voltadas para todas as setores da economia, desde o setor agropecuário até o de serviços, passando, naturalmente, pelo setor industrial, então primordial. Essas medidas, que vieram a ser chamadas “New Deal” – Novo Trato, Novo Pacto, Novo Negócio – vieram posteriormente se tornar permanentes, sendo batizadas com o nome genérico de “Políticas Públicas”. Movida a dinheiro público, a economia gradualmente se recuperou, e os partidários do Partido Democrata no Congresso, que dava sustentação política a FDR, rapidamente tomaram as medidas legislativas necessárias para tornar permanente o que era para ser temporário. Com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial em 1941, o período de emergência, agora decorrente da atividade bélica, se estendeu até o final da guerra – na verdade, até o final do primeiro mandato do último Vice-Presidente de FDR, Harry S. Truman, no início de 1949. (Em 1948, no que alguns autores consideram um milagre, Truman foi reeleito, depois de um primeiro mandato em que foi extremamente impopular).
Ao longo desse período de dezesseis anos, que foi do início de 1933 ao início de 1949, a maior parte dos liberais americanos abandonou o Liberalismo Clássico e adotou um Liberalismo com feições supostamente com feições mais humanas, mas que nada mais era do que um misto de Liberalismo e Socialismo, que, no resto do mundo, veio a ser chamado de Social-Democracia. Esses Liberais Americanos vieram a dominar o Partido Democrata, e os Liberais Clássicos passaram a ser minoria no país. Alojaram-se, muitos deles, no Partido Republicano, porque sua única chance de ganhar eleições, em um sistema bipartidário, foi fazer uma aliança estratégica com os Conservadores que dominavam aquele partido. Isto se deu a partir do início dos anos 1950, cerca de sete anos depois do final da Segunda Guerra Mundial.
Foi uma aliança complicada e difícil, pois os Liberais Clássicos defendiam um estado mínimo, de atribuições de reduzidas, e o movimento conservador reunia cristãos conservadores e até mesmo fundamentalistas, acostumados a pressionar o governo a interferir, se não na vida econômica, na vida social, como, por exemplo, proibindo o comércio de bebidas alcoólicas em público (algo que foi feito através de uma Emenda Constitucional. O período da chamada “Prohibition” durou de 1920 a 1933. Durante a vigência dessa Emenda Constitucional, que foi revogada por outra Emenda Constitucional no início da primeira gestão presidencial de FDR, em 1933, foi proibido “fabricar, importar, transportar e vender” bebidas alcoólicas. Durante essa época também houve movimentos para proibir jogos de azar, shows com conteúdo sexual voltados para adultos, produção, comercialização e até posse de material pornográfico, e mesmo o divórcio. Para se ter uma ideia, até meados do século 20 uma boa parte dos estados do Sul dos Estados Unidos, e vários das demais partes, tinham leis que criminalização a fornicação (relações sexuais entre pessoas adultas solteiras, mas não casadas entre si), adultério (relações sexuais de pessoas casadas com pessoas que não eram o sue cônjuge) e até coabitação (convivência, debaixo do mesmo teto, de pessoas adultas de sexo diferente, que não eram casadas entre si – mesmo que não existisse evidência de que a convivência envolvia relacionamento sexual). Ou seja: uma boa parte dos conservadores, aqueles que defendiam esse tipo de legislação, não iria ter uma convivência fácil com os liberais clássicos. Mas, como se diz, a política às vezes leva à formação de estranhas parcerias… Haja vista, aqui no Brasil, recentemente, a parceria, ou aliança estratégica, entre o ex-presidente Lula e seu ex crítico e inimigo, Geraldo Alckmin.
A parceria ou aliança estratégica entre liberais clássicos e conservadores nos Estados Unidos, a partir de 1953, com a eleição para a Presidência, em 1952, do General Dwight Eisenhower e para a Vice-Presidência de Richard M. Nixon, vitória repetida em 1956. Em 1960 os Democratas ganharam e ficaram no poder de 1961 até 1969, perdendo para o republicado Richard M. Nixon na eleição do conturbado ano de 1968. Os republicanos ficaram no poder de 1969 até 1977, perdendo a eleição de 1976 para o democrata Jim Carter, que ficou no poder só um mandato (1977-1981) e perdeu para o principal personagem conservador na política americana no século 20, Ronald Reagan, na eleição de 1980. Reagan ficou no poder durante oito anos, de 1981 a 1989, tendo sido sucedido, nas eleições de 1988, por seu Vice-Presidente, George H. W. Bush (o Bush Pai), que governou durante um só mandato (1989-1993). Os democratas ganharam a eleição de 1992 e governaram com Bill Clinton por oito anos, de 1993-2001. Na eleição do ano 2000, George W. Bush (o Bush Filho) ganhou a eleição, governando o país por um período de oito anos (2001-2009). Nas eleições de 2008 os democratas voltaram ao poder, com Barack Obama, nas eleições de 2008, governando a nação por dois mandatos (2009-2017). A eleição de 2016 foi ganha pelo republicano Donald Trump, que ficou no poder um mandato (2017-2021), que perdeu a eleição de 2020 para o democrata que governa os Estados Unidos até hoje (2021- ), Joe Biden.
Por esse relato, talvez desnecessariamente detalhado, é possível constatar que a parceria entre liberais clássicos e conservadores tem funcionado, a despeito das dificuldades ocasionais. Mas essa parceria é resultado de uma aliança estratégica, com o objetivo de impedir o avanço do Liberalismo Americano, que representa a esquerda naquele país. Os parceiros não morrem de amores uns pelos outros. Às vezes se detestam. Mas sabem se aliar em prol de um bem comum.
Hoje, 8.11.2022, quando se chega ao final do segundo ano do mandato de Biden, há eleições intermediárias para o Congresso e para o governo de alguns estados nos Estados Unidos, e é possível que os republicanos a vençam, dando aos democratas uma séria advertência para a eleição presidencial de 2024. Essas eleições intermediárias são um bom termômetro para medir o prestígio do partido do presidente em exercício. Antes de terminar o artigo, deixo um comentário aqui, através de uma nota, sobre o resultado das eleições de hoje nos EUA [3].
Mas deixemos as questões práticas de lado, e concentremo-nos nas questões mais teóricas.
3. O Conservadorismo no Plano Conceitual
Conservar alguma coisa é tentar preservar essa coisa, procurar mantê-la em estado satisfatório de existência ou de apreciação, desfrutamento, utilização e aproveitamento (Microsoft Word me diz que o termo “desfrutamento” não existe, mas ele fica: a língua é feita pelos que de fato a usam, não pelos que pretendem normatizá-la e cristalizá-la).
Se se trata de conservar um objeto físico, algo concreto, como o quadro da Monalisa, não há dificuldade de entender o conceito de conservação: ele parece relativamente simples. Mas o que dizer quando se propõe conservar, preservar, manter em ordem, usar ou desfrutar algo abstrato, como a “Cultura Ocidental”, ou, então, se acrescenta, para complicar ainda mais, um adjetivo problemático como a “Cultura Ocidental Cristã”? Ou, então, coisas que estão, de certa forma, embutidas nas expressões anteriores, como a “Educação Tradicional”, ou a “Educação Clássica”, ou, ainda, a “Educação Através dos Clássicos” ou a “Educação Através dos Grandes Livros” (no plano Mundial ou no plano do Hemisfério Ocidental).
É preciso registrar que, com certeza, ninguém é conservador em relação a tudo o que se passou no mundo desde o início da existência da raça humana – ou da civilização (que pode ser a mesma coisa, visto que parece impossível falar em civilização pré-humana). Isso é totalmente impossível – e isso por uma razão simples: há elementos autocontraditórios e mutuamente exclusivos na história da raça humana e da civilização: judeu ou goy/goyim, grego ou bárbaro, cristão ou gentio, cristão católico ocidental (latino) ou cristão ortodoxo oriental (grego), cristão ,católico ou cristão protestante (não só no Ocidente, mas em todo o mundo) protestante conservador ou protestante liberal (de qualquer denominação), crente em Deus (de qualquer religião) ou ateu (de qualquer vertente) – e assim vai. Em outras palavras: o espaço em relação ao qual alguém é conservador ou inovador, conservador ou reformista, conservador ou revolucionário, precisa sempre ser definido e delimitado para a análise ou discussão fazer sentido.
No caso da parceria estratégica entre Liberais Clássicos e Conservadores para eleger candidatos do Partido Republicano, o objetivo era (em seu lado positivo), conservar e preservar, nos Estados Unidos, um espaço de liberdade individual, na área empresarial, na área educacional, na área moral (incluindo a moral sexual, formas eficazes de prevenção da gravidez indesejada que evitam que o aborto seja uma alternativa considerada, etc.), na área social, formas eficazes de prevenção do uso de substâncias intoxicantes e viciantes e do engajamento em práticas, como jogos de azar, que também se tornam viciantes, etc.), na área religiosa, enfim, na área pessoal. E, em seu lado negativo, impedir que os controles econômicos, financeiros, e políticos da pauta socialista-comunista, e os usos e costumes da “pauta dos costumes” socialista-comunista, com os quais estamos, aqui no Brasil, bastante familiarizados, prospere e ganhe terreno.
Isto posto, é forçoso registrar, no tocante ao componente educacional dessa parceria estratégica entre Liberais Clássicos e Conservadores, que, malgrado a concordância em relação ao princípio de que a educação seja preservada livre da interferência estatal (o princípio da separação entre educação e estado), resta uma grande quantidade de questões em relação as quais pode, e provavelmente vai, haver divergência, e divergência séria, entre Liberais / Libertários e Conservadores. É isso que vamos discutir na seção seguinte.
4. O Liberalismo e o Conservadorismo na Educação
Como visto no final da seção anterior, os liberais / libertários não admitem que o Estado intervenha ou interfira na educação, preservando, assim, o princípio da separação entre a educação e o Estado. Para eles, por conseguinte, o princípio da liberdade da educação em relação ao Estado implica que ela deva estar sempre livre da intervenção ou da interferência do Estado, em todo e qualquer sentido. Esse princípio é, para eles, conditio sine qua non de uma postura liberal / libertária em relação à educação.
Mas muitos desses liberais / libertários admitem que, por exemplo, os pais possam intervir e interferir na educação dos seus filhos, ainda que estes tenham alcançado a idade da razão, e até que outros membros da família (avós, tios, irmãos mais velhos) possam fazer isso. Outros vão mais longe ainda e admitem que a comunidade, no sentido mais estreito, em que as pessoas vivem possam fazer isso, porque, afinal de contas, a comunidade tem de arcar com algumas das consequências se algumas das crianças, ou mesmo se alguns adolescentes, jovens e mesmo adultos da comunidade, não são educados, ou são mal educados… Outros admitem que a igreja que a pessoa frequenta ou de que é membro (pressupondo que frequente alguma igreja, ou seja membro dela) possa fazer isso, porque a igreja, afinal de contas, tem interesse em como aqueles que a frequentam, ou que são membros dela, são educados – tanto que várias igrejas mantêm Escolas Dominicais ou Escolas Sabatinas, para suprir carências ou deficiências das agências mais comuns de educação (como a família, a comunidade ou a escola), em especial na área de princípios religiosos e valores.
E há, como no meu caso, liberais / libertários mais radicais que defendem não só a liberdade da educação no sentido de que o Estado não deve interferir ou intervir na educação, mas também no sentido de que nem a igreja, nem a comunidade, nem a família, e nem mesmos os pais têm o direito de interferir ou intervir na educação das pessoas vinculadas a elas, depois que essas pessoas alcançam a idade da razão e passam a ter condições de exercer sua “liberdade de aprender”, definindo um projeto de vida e escolhendo o que aprender, para transformar esse projeto em realidade, e como aprender o que for preciso aprender.
Por aí se vê que, não só é possível que haja, na educação, liberais / libertários extremamente radicais, inovadores ao extremo, revolucionários mesmo, e liberais / libertários conservadores, que defendem o ponto de vista que a educação é o processo de transmitir, de uma geração para a seguinte, a herança cultural da humanidade – ou, pelo menos, no caso do Ocidente, a herança cultural do parte da humanidade que compreende a Europa e o Novo Mundo (em especial no Norte do globo terrestre). Essa tese vê, como central e essencial nesse processo, a transmissão da herança cultural cristão, enriquecida pelos elementos clássicos greco-romanos que enriqueceram a herança cristã, sem com ela conflitar.
A questão é se é possível harmonizar os princípios liberais / libertários com essa herança cultural ocidental (grega, romana e cristã). Acho impossível manter toda essa herança sem comprometer o compromisso com a liberdade que é a essência do Liberalismo / Libertarianismo. O grande desafio é decidir o que é compatível e o que não é. O que pessoas como Olavo de Carvalho e Rodrigo Constantino propõem, cristãos católicos ortodoxos que são, compromete, a meu ver, o Liberalismo / Libertarianismo. O que C. S. Lewis propõe, anglicano que é, mas um anglicano que características próprias, disposto a definir um “Cristianismo Essencial Básico”, é mais fácil de compatibilizar, mas não in totum. A visão de Lewis deixa de lado alguns elementos do Cristianismo Ortodoxo e, também, do Liberalismo / Libertarianismo.
No artigo seguinte, o terceiro, pretendo discutir em mais profundidade esse desafio. Eu, pessoalmente, aceito algumas partes da herança ocidental cristã, mas sem estar disposto a comprometer o meu Liberalismo / Libertarianismo radical.
Notas
[1] “A Implicância de Liberais Conservadores com o Construtivismo na Educação – vol.1”, publicado em 29.9.2022, aqui neste blog, Chaves Space, no endereço: https://chaves.space/2022/09/29/a-implicancia-de-liberais-conservadores-com-o-construtivismo-na-educacao-vol.1/.
[2] FDR faleceu menos de quatro meses depois de tomar posse em 1945: ele tomou posse em seu quarto mandato em 20.1.1945 e morreu em 12.4.1945. Foi substituído na Presidência pelo seu vice-presidente, Harry S. Truman – o último presidente americano sem diploma de conclusão de curso superior. Coube a ele presidir os Estados Unidos nos meses finais da Segunda Guerra Mundial, oficialmente, terminou na Europa em 8.5.1945, e, globalmente, em 2.9.1945, com a rendição incondicional do Japão. Foi Truman que autorizou o lançamento de duas bombas atômicas sobre o Japão, em Agosto de 1945, que realmente puseram fim à guerra. A primeira bomba foi lançada sobre Hiroshima, em 6.8.1945, e, a segunda, sobre Nagasaki, em 9.8.1945. Vide, a esse respeito, para uma referência rápida, o artigo “Atomic Bombings of Hiroshima and Nagasaki”, na Wikipedia em Inglês, no seguinte endereço: https://en.wikipedia.org/wiki/Atomic_bombings_of_Hiroshima_and_Nagasaki,
[3] As eleições americanas de “midterm” (metade do mandato presidencial) de 2022 foram realizadas em 8.11.2022. O resultado foi apertado e até hoje (12.11.2022) não está decidido qual dos dois partidos controlará o Senado e a Câmara dos Deputados.
Salto, em 12 de Novembro de 2022
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