Bem… O Natal passou. Tivemos um jantar familiar, quase maior do que comporta o nosso apartamento em São Paulo (que é razoavelmente grande), e, agora, só estamos a Paloma e eu em casa, prontos para ir para o sítio em Salto amanhã — onde, no noite de 31, teremos um outro jantar, este entre compadres, amigos, e sobrinhos “do coração”, mas com a presença das nossas meninas.
Apesar do rebuliço, e sem deixar de estar “suffichientemente” (como diz minha filha primogênita, que é gringa…) presente ao lado dos convivas, consegui ler uma biografia curta de Emily Dickinson (1830-1886), de Paul Brody, The Lonely House: A Biography of Emily Dickinson (Life Caps/Book Caps, 2013), avançar em duas biografias mais de peso sobre ela, de Cynthia Griffin Wolff, Emily Dickinson (Alfred A. Knopf / Doubleday / Amazon Kindle, 1986, 2015; 654 pp.), e, de Alfred Habegger, My Wars Are Laid Away in Books: A Life of Emily Dickinson (Random House / Amazon Kindle, 2001; 800 pp), e, depois de a casa ficar vazia, (re)ver, em companhia da Paloma, um lindo filme sobre ela, que assistimos há alguns anos: Além das Palavras (A Calm Passion). Confesso que tanto o título original como a sua tradução para o Português me confundem… Emily tinha uma alma apaixonada, mas chamar sua paixão de calma não me parece correto: ela era explosiva, como o filme mesmo o prova. E dizer que a vida dela, ou o filme, está “além das palavras”, também não me parece correto: não fossem as palavras e não haveria a vida dela, ou o filme… Mas…
Embora tenha vivido pouco (morreu aos 55 anos), Emily Dickinson é considerada a maior poetisa americana — ao lado de Walt Whitman (1819-1892), que nasceu antes e morreu depois dela, tendo sido contemporâneos os dois.
Uma reclusa, a maior parte do tempo, que publicou pouquíssimos poemas isolados em vida, ela surpreendeu o mundo deixando, ao morrer, um acervo de cerca de 1.800 poemas, a maior parte deles agoniados, curtos, com pontuação que todo editor quer corrigir, usando traços (de diversos tamanhos) no que parece ser em demasia, a poesia de Dickinson agrada críticos e leigos. Sua obra lida com questões intimistas, as dúvidas acerca da religião e dos aspectos mais fundamentais acerca da vida humana, a tentativa de dizer aquilo que é inefável, a dor da separação daqueles a quem a gente ama, seja essa separação causada pela morte ou pelo simples distanciamento, a dificuldade entre manter os relacionamentos humanos, ainda que apenas os realmente importantes, e ter o tempo e a solidão essenciais para colocar no papel aquilo que se passa na alma, antes que nos fuja a vida…
A obra completa de Emily Dickinson só foi publicada, do jeito que ela a escreveu, expurgada das “correções” editoriais, em 1959, mais de 70 anos depois de sua morte. E imaginar que, pelo seu último desejo, nós não teríamos visto todos os 1800 poemas, porque Emily exigiu, de sua irmã mais nova, Vinny (Lavinia), que, depois de sua morte, ela queimasse todos os seus papeis — promessa essa que Vinny, ao ver a imensidão e a grandeza intelectual do que ela teria de destruir, felizmente resolveu não cumprir, tornando-se merecedora da gratidão profunda daqueles que vieram depois.
Emily nasceu e morreu em Amherst, MA, e viajou pouquíssimo, as viagens mais significativas sendo a Boston, MA, não longe de sua casa, e Washington, DC, onde seu pai chegou a senador da República. Não se casou — o que de certo modo foi bom, para ela e para quem deixou de se casar com ela, porque a convivência diária com ela não era fácil, mesmo sendo ela uma reclusa. Emily tinha uma língua ferina e uma mania de demonstrar honestidade e integridade pessoal que implicava sempre dizer exatamente o que ela pensava, da forma mais clara e dura (ou chocante) possível… Essa era uma combinação quase fatal para quem convivia (ou poderia ter convivido) com ela, como seu casal de irmãos muito cedo descobriu, ele, mais velho, especialmente.
Alguns biógrafos acham que Emily tinha uma paixão mais do que apenasmente (sic) intelectual pela cunhada, mulher (abertamente traída) por seu irmão. Susan Gilbert Dickinson (esse o seu nome) era apenas nove dias mais nova do que Emily — e também um poço de intelectualidade e sensibilidade… Mas eu tenho a impressão de que era apenas amizade profunda entre duas mulheres fantásticas que se admiravam muito e gostavam muito uma da outra…
Eis o que a cunhada escreveu dela por ocasião de sua morte — um pequeno trecho, e sem tradução:
“The death of Miss Emily Dickinson, daughter of the late Edward Dickinson, at Amherst on Saturday, makes another sad inroad on the small circle so long occupying the old family mansion.…
Very few in the village, except among the older inhabitants, knew Miss Emily personally, although the facts of her seclusion and her intellectual brilliancy were familiar Amherst traditions.…
As she passed on in life, her sensitive nature shrank from much personal contact with the world, and more and more turned to her own large wealth of individual resources for companionship.…
Not disappointed with the world, not an invalid until within the past two years, not from any lack of sympathy, not because she was insufficient for any mental work or social career—her endowments being so exceptional—but the “mesh of her soul” … was too rare, and the sacred quiet of her own home proved the fit atmosphere for her worth and work.…
. . . Her life was rich, and all aglow with God and immortality. With no creed, no formulated faith, hardly knowing the names of dogmas, she walked this life with the gentleness and reverence of old saints, with the firm step of martyrs who sing while they suffer.”
Apud Cynthia Griffin Wolff, Emily Dickinson (Alfred A. Knopf / Doubleday / Amazon, Kindle Edition, Kindle Locations 12023-12033).
Que este finzinho de 2018 e o ano de 2019 inteiro lhes sejam felizes.
Em São Paulo, 26 de Dezembro de 2018.
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