Primeiras Aproximações
Filosofar é estreitamente relacionado com pensar. A filosofia é uma forma de reflexão. Mas existem outras atividades intelectuais que também envolvem pensar, que também são formas de reflexão — como, por exemplo, as ciências exatas, as ciências sociais, a psicologia, a teologia, a arte, e até mesmo o senso comum. Como é que o pensar e o refletir da filosofia se distinguem do pensar e do refletir dessas outras formas de pensamento e reflexão?
O cientista natural que atua nas chamadas ciências exatas (física, química, etc.) pensa e reflete sobre algum aspecto da chamada realidade natural. O físico encara essa realidade do ponto de vista físico; o químico, do ponto de vista químico, etc. Não cabe aqui discutir quantas ciências naturais existem e quais são. Mas se faz sentido falar em ciências naturais, certamente a física e a química são duas delas.
O cientista natural que atua nas chamadas ciências biológicas pensa e reflete sobre a realidade viva, orgânica, isto é, sobre animais, plantas e outros organismos — inclusive sobre o ser humano, em seus aspectos biológicos.
O cientista social pensa e reflete sobre a realidade social, sobre aqueles aspectos da realidade que são criados ou modificados pelo ser humano — além da sociedade, em si, a economia, a política, a cultura, a antropologia, o próprio ser humano, enfocado em seus aspectos sociais.
Para todos esses cientistas, o objeto de sua reflexão é, de certa forma, algum aspecto da realidade que lhe é dado pela percepção (observação, ou, então, por experimento). É verdade que em cada uma dessas ciências pensa-se e reflete-se sobre entidades e processos que não são necessariamente visíveis, enquanto tais, pelo menos a olho nu. Mas mesmo nesses casos, pressupõe-se ou postula-se que essas entidades e esses processos existem e têm consequências observáveis.
O psicólogo (a menos que ele seja behaviorista) pensa e reflete sobre a realidade psíquica do ser humano: sobre seus processos e eventos mentais (seus pensamentos, suas ideias, suas crenças, suas sensações, suas emoções, suas paixões, suas escolhas, suas decisões, seus planos, suas intenções, suas ações, etc.). Os objetos sobre os quais o psicólogo não behaviorista pensa e reflete não são diretamente visíveis. Se ele reflete sobre pensamentos, ideias, crenças, sensações, emoções, paixões, etc. de terceiros, ele só o faz de modo indireto, baseado principalmente em declarações feitas por outras pessoas, que é algo que é possível observar, ou, como preferem os behavioristas, baseado no comportamento delas, que também é algo eminentemente observável. Se ele reflete sobre seus próprios pensamentos, ideias, crenças, sensações, emoções, paixões, etc. ele o faz usando um processo de introspecção, não de observação — ele, por assim dizer, “olha para dentro de si próprio”, não para fora, mas esse olhar não é feito com os olhos… Neste caso, ele não necessita, portanto, nem de observações (muito menos do seu próprio comportamento), nem de declarações (feitas por si próprio). Ele tem um acesso direto e imediato aos seus próprios pensamentos, ideias, crenças, sensações, emoções, paixões, etc., e, em regra, sabe o que está fazendo mesmo sem precisar se observar. Em regra.
Disse “em regra”, porque as regras, na prática, nem sempre se aplicam. Por incrível que pareça, a gente pode ignorar o que se passa na mente da gente. Muita gente já precisou que alguém lhe dissesse que estava apaixonado por uma determinada pessoa para descobrir isso. Até que lhe fosse revelado, ela ignorava o fato — ou, talvez, o reprimisse (mas falar em repressão aqui complica as coisas demais). Mas, pior ainda, é um fato comprovado que a gente se engana (ou, pelo menos, claramente tenta se enganar). A primeira reação de alguém que é informado por terceiros de que está apaixonado por uma determinada pessoa é negar — às vezes peremptoriamente. E isso, mesmo que ele, de fato, esteja apaixonado, como, muitas vezes, vem reconhecer apenas depois. (Se você pensa que estudar a realidade física, química e biológica é algo complicado, fique sabendo que estudar a mente humana, em especial a alma, é muitíssimo mais complexo. Uma pedra nunca tenta enganar você fazendo você pensar que ela é, digamos, um abacate.
O psicólogo behaviorista, tentando fazer da psicologia uma ciência natural, reflete apenas sobre o comportamento do ser humano, que, naturalmente, é observável, mensurável, etc. — embora as causas do comportamento, ou, se se prefere, as razões que levam as pessoas a se comportar de uma ou de outra maneira, não sejam necessariamente visíveis e mensuráveis. Mas o psicólogo behaviorista não está interessado nas causas ou razões do nosso comportamento: só no comportamento em si. Ele foge da raia, por assim dizer, quando as coisas ameaçam ficar realmente complicadas. Há até uma piadinha filosófica meio infame (elas existem, por incrível que apareça) que descreve o encontro de dois behavioristas. Um diz ao outro (e o outro ao um): “Você está muito feliz hoje; como é que eu estou?”. A piada é infame, naturalmente, porque a gente não precisa olhar no espelho, nem, muito menos, esperar que alguém nos diga, se estamos felizes ou não. A gente normalmente sabe de forma direta e imediata. Normalmente. Como já disse, às vezes a gente se engana, mas a maior parte das vezes, não.
O teólogo, de certo modo como o psicólogo, reflete sobre uma realidade puramente espiritual que supostamente transcende a dimensão empírica, e à qual, portanto, não se tem acesso direto através da observação. Teólogos têm discutido muito como é que se tem acesso a essa realidade espiritual que supostamente jaz além do mundo empírico. Alguns têm afirmado que é através da realidade empírica que chegamos ao conhecimento da realidade que jaz além dela. Outros têm afirmado que só temos conhecimento dessa realidade trans-empírica quando ela se revela a nós. E outros desistem de estudá-la e afirmam que deus é o homem sublimado — aquilo que a gente gostaria de ser, mas sabe que não é — e o céu é um lugar aqui na Terra mesmo… Esses teólogos são antropólogos, sociólogos e psicólogos em desvio de função. (Quem já foi funcionário público sabe muito bem o que é desvio de função: é o exercício de uma função que não é a que lhe cabe no organograma e na descrição de cargos da instituição — como o professor que é retirado da sala de aula para exercer uma função burocrática na escola ou na secretaria da educação.)
E o filósofo, pensa e reflete sobre o quê? Qual o objeto da filosofia? Refiro-me ao filósofo de hoje, ou, pelo menos, aquele de meados do século 19 para cá. O filósofo dos primórdios da filosofia pensava e refletia sobre qualquer coisa que quisesse, desde deus e os astros até os menores animaizinhos e as mais insignificantes plantinhas… (Naquela época não haviam ainda sido descobertos os micróbios, as bactérias, os vírus, que hoje atormentam a nossa vida e causam epidemias e pandemias.)
Paremos por um momento para refletir sobre o que vimos pensando ou refletindo nos parágrafos anteriores. Certamente não vimos refletindo sobre a realidade física, biológica ou mesmo social. Também não vimos refletindo sobre as coisas que são objeto de reflexão de psicólogos (behavioristas ou não) e de teólogos. Na verdade, o objeto de nossa reflexão, nos parágrafos anteriores, tem sido a reflexão que cientistas e outros intelectuais (como psicólogos [não behavioristas — os behavioristas se iludem imaginando que são cientistas] e teólogos) fazem. Não estivemos, portando, refletindo sobre a realidade, propriamente dita. Estivemos, isso sim, refletindo sobre como diferentes tipos de pessoas refletem sobre a realidade.
O que isso quer dizer é que existe um tipo de reflexão, que poderíamos chamar de reflexão de primeira ordem, que tem como objeto a realidade, propriamente dita, aquela que é observável, e que existe um outro tipo de reflexão, que poderíamos chamar de reflexão de segunda ordem, que tem como objeto a reflexão de primeira ordem. É com esta reflexão de segunda ordem que a filosofia se identifica. Nada nos impede de dizer que a reflexão do filósofo é, portanto, uma meta-reflexão: reflexão sobre reflexão.
É verdade, porém, que, como a reflexão se exprime através da linguagem, poderíamos dizer que a filosofia é um meta-discurso (ou um discurso de segunda ordem) sobre os vários discursos de primeira ordem — discurso científico, discurso psicológico, discurso teológico (ou religioso), discurso artístico, discurso pedagógico, etc. e até mesmo sobre o discurso do chamado senso comum — o discurso que expressa as reflexões do homem da rua ou da roça, por assim dizer — com todo o respeito, em ambos os casos.
Na verdade, nada impede que exista reflexão de terceira, quarta, ou qualquer outra ordem sobre a realidade, propriamente dita [1] — embora a questão fique cada vez mais complicada, à medida que se distancia da realidade, propriamente dita. Existe, hoje, sacramentada, inclusive com periódicos, associações, etc., uma área de atividade intelectual chamada de meta-filosofia — que nada mais é do que um discurso de terceira ordem sobre a sobre a realidade propriamente dita (visto que é um discurso sobre a filosofia e esta já é um discurso de segunda ordem). E nada impede que venha a surgir, se é que não surgiu ainda, uma meta-meta-filosofia, ou uma meta2-filosofia, que seja um discurso de quarta ordem sobre a realidade propriamente dita (visto que é um discurso sobre a meta-filosofia, que já é um discurso de terceira ordem sobre essa realidade). E assim vai.
O Filosofar Ilustrado
Para muitos a filosofia exerce, no âmbito das ciências humanas e das humanidades (letras e artes), função semelhante à que a matemática exerce no seio das ciências naturais (e supostamente exatas, exatamente porque fazem uso abusivo da matemática), sendo, como a matemática, igualmente temida.
Esse receio diante da filosofia é frequentemente induzido pelos próprios filósofos. Ao ler as obras de alguns deles, fica-se com a nítida impressão de que elas foram escritas mais para impressionar e intimidar do que para esclarecer e nos ajudar a aprender e entender.
Os escritos de certos filósofos existencialistas, por exemplo, são tão cifrados em linguagem hermética que se tornam literalmente incompreensíveis para quem não fez deles sua especialidade. Cheios de neologismos (palavras novas, inventadas), cheios (especialmente quando escrevendo em Alemão) de palavras compostas, emendadas de várias outras, repletas de hifens onde nenhum era exigido ou esperado, cheios de termos velhos empregados em sentidos totalmente novos, contendo elaborados discursos sobre o “nada”, como se o nada fosse algo extremamente complexo e obscuro, em vez do nada que de fato é, esses escritos dão a impressão de que seus autores desejaram esconder o pensamento atrás da linguagem, ao invés de revelá-lo através dela.
Mas não são apenas os existencialistas que usam técnicas linguísticas intimidatórias para o não-iniciado. Os filósofos analíticos neo-positivistas, que se designam positivistas lógicos, e que tanto professam aderir à clareza, usam e abusam de notações lógicas, dando a impressão de que textos de filosofia mais se assemelham a tratados de matemática pura do que a algo que uma pessoa leiga inteligente possa ler, entender e apreciar.
Mas a filosofia não foi sempre obscura e formalista (formal? formalística?). Nem é preciso que o seja, para ser profunda, rigorosa, e útil.
Para constatar que a filosofia nem sempre foi difícil de entender, basta ler os diálogos platônicos protagonizados por Sócrates. Obras primas de clareza, os diálogos socráticos mostram como a filosofia, sem perda de profundidade e de rigor, pode se tornar compreensível para pessoas comuns inteligentes e interessadas, mesmo que não cultas, no sentido convencional do termo. Sócrates dialogava até com escravos. Seus diálogos precisam permanecer, quanto ao estilo, como um dos modelos da atividade filosófica.
Outro modelo a ser seguido e imitado, quanto ao estilo filosófico, é David Hume, filósofo escocês do século XVIII. Depois de escrever, em sua juventude, uma obra muito profunda e bastante complexa, que não causou nenhuma atração, e, por isso, nenhum impacto imediato sobre seus contemporâneos, Hume concluiu que, se é desejável que filosofia influencie os leigos (não-filósofos), é para estes que ele deveria escrever. Para alcançar esse objetivo, resolveu mudar de estilo: abandonou a filosofia mais hermética, voltada quase que exclusivamente para outros filósofos, e, sem abrir mão do rigor lógico, adotou um estilo mais leve, literário, irônico, até divertido, e certamente acessível ao leigo cuja atenção desejava obter. Hume soube tornar a leitura da filosofia agradável. É frequentemente difícil lê-lo sem um leve sorriso, causado pelo humor fino, pelo “wit“, pela alfinetada bem dada [2]. O estilo de Hume deve permanecer como outro modelo da atividade filosófica.
Tendo revelado meus modelos estilísticos, Sócrates e Hume, não hesito ao afirmar com todas as letras que pretendo fazer com que o leitor, mesmo aquele que mais a receia, venha a gostar da filosofia ao terminar de ler este texto. Não há nenhuma razão porque o útil não possa se unir ao agradável. É parte dos mitos de nossa cultura que o útil deve ser difícil, tedioso, inacessível, “sacal”… Contudo, a verdade é bem outra. Filosofar é algo importante — talvez nada exista de mais importante na vida intelectual — e, no entanto, algo extremamente prazeroso e agradável. É verdade que os outros nem sempre gostam daquilo que nossa filosofia nos leva a dizer. Haja vista Sócrates, forçado a tomar cicuta por causa de suas posições filosóficas. (As más línguas afirmam, porém, que ele deu as boas-vindas à morte, porque a vida ao lado da Xantipa, sua mulher, havia se tornado simplesmente insuportável…)
A vida não examinada, dizia Sócrates, não é digna de ser vivida. Filosofar é examinar a vida que vivemos, é refletir sobre os porquês de viver dessa forma e não daquela outra, de fazer isso e não aquilo, de apreciar essa obra de arte e não aquela, de amar essas e não aquelas pessoas, de acreditar nesses e não naqueles enunciados…
Mas se filosofar é isso, então todos nós filosofamos — se não o tempo todo, pelo menos de vez em quando. Alguns exemplos…
Quando alguém nos afirma alguma coisa, e queremos saber com base no quê a pessoa faz aquela afirmação, tentando averiguar se ela realmente tem conhecimento do que diz, ou se o que está dizendo não passa de mera opinião sua, estamos nos envolvendo com a questão dos fundamentos dos enunciados que ouvimos ou fazemos, com o problema da distinção entre conhecimento e mera crença, entre saber e meramente acreditar, entre dizer a verdade e simplesmente externar a opinião. Essa questão e esse problema fazem parte da filosofia desde os seus primórdios. Há mais de um diálogo socrático que discorre sobre esse assunto.
Quando vemos certas obras supostamente de arte e nos perguntamos o que é que há de artístico nelas, estamos dando vazão a um sentimento filosófico — é verdade, existem sentimentos filosóficos! — que se revolta contra a tendência de considerar pedaços de ferro aparentemente torcidos a esmo, ou pedaços de jornal cobertos de borrões e mal dispostos numa tela, como arte. Se procurarmos verbalizar e explicitar esse sentimento, estaremos filosofando.
Quando ouvimos certos ruídos no rádio e protestamos, afirmando que aquilo não é música, não importa o que pensem nossos filhos, estamos lidando com questões filosóficas. Música é arte, e nem todo barulho é música, mesmo que gravado em disco e reproduzido através de tecnologia a laser.
Quando vamos a uma exposição de arte e vemos uma suposta escultura, composta, de um lado, de um lindo vaso de rosas, e, de outro, de um penico com cocô, ou, então, um homem adulto deitado nu no chão para que as crianças o examinem, e isso provoca em nós um sentimento de revolta, fundado na certeza de que aquilo não é arte, o sentimento e a certeza decorrem de valores que fazem parte de nossa filosofia, ainda que nunca o tenhamos explicitado antes.
Quando, de um lado, lemos relatos de comunidades ou grupos sociais que praticavam rotineiramente o canibalismo, ou o sacrifício humano, ou que deixavam que bebês defeituosos (ou mesmo do sexo feminino) morressem à míngua, e, de outro lado, lemos certos pensadores relativistas afirmar que o certo e o errado, do ponto de vista moral, são relativos, e que o que é moralmente errado, de nosso ponto de vista, pode ser moralmente certo em outro contexto, sentimos (a menos que estejamos já contaminados pelo vírus relativista) um certo mal-estar filosófico — que também existe! Esse mal-estar nos leva a indagar se é realmente possível que haja justificativa moral para práticas como essas. Não seriam essas ações moralmente condenáveis em qualquer contexto espaço-temporal, mesmo que as pessoas, a comunidade ou o grupo social que as realizam as considerem moralmente corretas, quiçá obrigatórias? Essas indagações são filosóficas. Mesmo Bertrand Russel, considerado um dos maiores filósofos do século 20, uma vez admitiu que, por mais que tentasse chegar a uma outra conclusão, a única coisa que ele via de errado em Hitler era que ele, Russell, não gostava do que Hitler havia feito na vida…
Mudemos um pouco de exemplo, pois alguns dos citados são de enojar a gente. Se uma pessoa, ao bater os olhos no rosto do cônjuge ou parceiro, percebe que algo não vai bem, e pergunta a ele qual o problema, ela está fazendo inferências complexas acerca de estado de espírito do outro a partir de seu comportamento e do seu semblante. A questão da medida em que isso é justificável é uma questão filosófica, que psicólogos behavioristas fariam bem em considerar com mais seriedade.
Quando louvamos ou criticamos as escolas por darem muita ou pouca ênfase à tradição cultural, aos “grandes livros do mundo ocidental”, ou por estarem demasiadamente preocupadas com a profissionalização, ou com o vestibular, em detrimento de uma formação mais ampla do aluno, em prejuízo do seu desenvolvimento humano, de seu pensamento crítico, de sua criatividade, de sua sensibilidade artística, estamos definindo a educação e priorizando objetivos para ela, pelo menos em sua modalidade escolar, e estamos mais uma vez filosofando.
Quando optamos por uma carreira ou uma profissão menos rentável do ponto de vista financeiro, mas que nos traz satisfação e felicidade, e que nos leva à “eudaemonia”, realização pessoal, como diziam os gregos, estamos agindo em função de valores cujo exame é uma das tarefas centrais da filosofia. Estamos, em condições como essa, fazendo uma declaração pública de nossa filosofia, através de nossas ações, de nossas escolhas, de nossas decisões.
Quando escolhemos anestesiar a mente e destruir o corpo com drogas, também estamos fazendo uma declaração pública de nossa filosofia: estamos dizendo que não vale a pena viver, ou, pelo menos, que não vale a pena viver alerta e conscientemente.
E assim por diante.
Esses exemplos, recolhidos daqui e dali, nos mostram que todos filosofamos, em algum momento ou outro, com maior ou menor rigor, com mais ou menos consciência do fato. A questão não é se vamos filosofar ou não, mas com que grau de consciência e rigor vamos fazê-lo.
Apesar de ilustrarem vários aspectos da atividade filosófica, esses exemplos não fornecem, contudo, uma caracterização completa da filosofia, muito menos a definem. Isso pretendo fazer em outro artigo, abordando a questão da definição da filosofia de maneira mais sistemática.
Mas é bom ressaltar, antes disso, que ao leigo pode parecer incrível que filósofos profissionais não tenham conseguido chegar a um acordo a respeito do que seja a filosofia, isto é, acerca de seu próprio objeto de estudo. Esta, porém, é a pura verdade. Isso se dá porque a questão da natureza e da tarefa da filosofia já é, ela própria, um problema filosófico: é impossível definir, de fora da filosofia, sua natureza e sua tarefa. Como toda questão filosófica, a questão relativa ao objeto e ao método da filosofia já comporta uma variedade de respostas. A “primeira aproximação” de uma definição da filosofia que pretendo oferecer, no artigo seguinte, não é universalmente aceita — muito pelo contrário.
Qualquer iniciante poderá perceber que filósofos, em geral, são bem mais hábeis em fazer perguntas do que competentes para respondê-las com clareza.
No entanto, tentam, desesperadamente, lidar com todas as perguntas e indagações, suas ou dos outros, e eventualmente propõem respostas para elas. Por isso, para cada pergunta, ainda que aparentemente, simples, fornecem uma série enorme de respostas, quase sempre incompatíveis. Como qualquer questão filosófica, a pergunta “O que é a filosofia?” tem recebido uma variedade de respostas.
A alguns pode parecer que essa proliferação de respostas seja indicativa do próprio fracasso da filosofia. Outros vêem nessa situação a grande riqueza do pensamento humano, que, para cada problema que lhe é proposto, é capaz de imaginar uma variedade de soluções, todas elas, em maior ou menor grau, dignas de consideração, e muitas delas contribuindo, de uma maneira ou de outra (mesmo que por contraste), para uma compreensão mais ampla e profunda dos problemas com que se depara o ser humano.
Concordo com os que pensam assim. Embora muitos problemas filosóficos milenares não tenham (ainda?) sido solucionados, nossa compreensão deles, hoje, não é idêntica à dos filósofos que os formularam pela primeira vez: é bem mais profunda e ampla, e isso em virtude das várias respostas que já lhes foram sugeridas. Esse fato indica que há progresso na filosofia, apesar de esse progresso não poder ser medido quantitativamente, em referência ao número de problemas solucionados, sendo somente constatado através de uma visão qualitativa, que leva em conta o aprofundamento e a ampliação de nossa compreensão desses problemas.
[1] A razão pela qual persisto em dizer “realidade, propriamente dita” é que a reflexão que se faz sobre a realidade é, em sentido importante, mas expandido, do termo “realidade”, também faz parte da realidade.
[2] Exemplos… Solteirão inveterado, Hume decidiu convencer seu irmão a também desistir de contrair matrimônio, tentando persuadi-lo a acreditar que as mulheres são sempre imprevisíveis. Disse-lhe que “as mulheres são os únicos corpos celestes cujo comportamento a ciência newtoniana foi incapaz de predizer”… Ao final de seu famoso artigo sobre milagres, que poderia levá-lo à prisão no século 18, disse: “Por isso, nossa mui santa religião cristã não só foi acompanhada de inúmeros milagres quando surgiu, mas, até hoje, é impossível acreditar nela em um outro…”. Acusado de ter afirmado que o Cristianismo era tão absurdo que era necessário que acontecesse um milagre para que alguém pudesse acreditar nele, Hume saiu-se pela tangente, recorrendo ao calvinismo de sua infância, que afirmava que é só pela fé a gente pode se salvar, e que até mesmo a fé é um dom de Deus — vale dizer, um milagre!
Artigo escrito nos dez anos compreendidos entre 1991 e 2001, em Campinas — vale dizer de 30 a 20 anos atrás. Levemente revisado nos últimos dois ou três dias. Salto, em 6 de Agosto de 2021.
Categories: Liberalism
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