O Sofrimento e a Morte, a Fé e a Verdade, a Esperança e a Convivialidade Futura, e a Religião como a Comunhão, Aqui, dos Esperantes

1. Introdução

Vou começar este artigo narrando, no Capítulo 2, alguns fatos relacionados a mim e à minha família, em especial a família que eu adquiri por casamento. Espero terminá-lo, entretanto, com uma discussão genérica da questão enunciada no (enorme!) título. Discuto, a seguir, nos Capítulos 3 e 4, uma morte histórica importante, pela repercussão, não só pela fama do falecido (David Hume), como por sua atitude diante da morte (Capítulo 3), e uma discussão famosa, entre William K. Clifford e William James, acerca da racionalidade e fé, diante da evidência (Capítulo 4). No Capítulo 5 volto a ser biográfico, discutindo minhas principais dificuldades em aceitar certas doutrinas da fé cristã, principalmente em sua versão presbiteriana. Nos Capítulos 6 e 7 entro na parte final, discutindo algumas ideias de Karl Popper e novamente William James (Capítulo 6) e minha conclusão (Capítulo 7).

O assunto que pretendo discutir na parte final (Capítulos 6 e 7) é o seguinte: Não é segredo algum que há muito conflito na área da religião. Não estou falando de conflito entre as grandes religiões, como Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, embora tenha havido, e ainda haja, bastante conflito entre as três grandes religiões monoteístas. Não estou falando também de conflito entre os grandes ramos do Cristianismo, como o Catolicismo, o Ortodoxismo (se o termo não existe, acabei de criá-lo), e o Protestantismo. E também não estou falando de conflito entre as grandes denominações protestantes: a Luterana, a Calvinista (Presbiteriana ou Reformada Calvinista), a Anglicana, a Batista, a Metodista, os Pentecostais, etc.

O que vou discutir é o conflito que existe dentro de uma mesma denominação, em especial daquelas que se orgulham de ser denominações eminentemente confessionais,  que tão ênfase a confissões que especifica, em geral de forma minuciosa, o que o fiel daquela denominação deve crer, deve considerar como verdade absoluta e inquestionável. Na minha opinião, a denominação Presbiteriana é a mais radical dentre as denominações confessionais. Além disso, essa é a denominação em que eu nasci, me criei, estudei para o ministério, e me encontro, de certo modo, até hoje.

O Presbiterianismo está no Brasil desde 1859. Faz um pouco mais de um 160 anos. O artigo sobre “Presbiterianismo no Brasil”, na Wikipedia em Português, informa que há, no Brasil, hoje, nada menos do que dezesseis variedades de Igreja Presbiteriana no Brasil: cinco que o artigo considera igrejas presbiterianas de linhagem histórica, variedades de Igreja Presbiteriana que o artigo considera pentecostais ou pentecostalizadas, e quatro que são Igrejas Presbiterianas que poderíamos chamar de étnicas, embora o artigo da Wikipedia não use esse qualificativo.

Para que não pairem dúvidas na cabeça dos leitores, são essas as dezesseis variedades de Igreja Presbiteriana dentro da denominação Presbiteriana.

As cinco igrejas presbiterianas históricas são:

  • Igreja Presbiteriana do Brasil
  • Igreja Presbiteriana Independente do Brasil
  • Igreja Presbiteriana Conservadora do Brasil
  • Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil
  • Igreja Presbiteriana Unida do Brasil

As sete igrejas presbiterianas pentecostais ou pentecostalizadas são:

  • Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil
  • Igreja Evangélica Cristã Presbiteriana
  • Igreja Cristã Presbiteriana Pentecostal
  • Igreja Cristã Presbiteriana
  • Igreja Presbiteriana Reformada Avivada do Brasil
  • Igreja Presbiteriana da Graça
  • Igreja Presbiteriana Vida

Além dessas, ainda há registro de mais quatro igrejas presbiterianas que eu denomino étnicas, por ainda terem algum vínculo com outros países (algo que algumas igrejas nas duas outras categorias também tiveram mas hoje não têm mais:

  • Igreja Presbiteriana Reformada – Presbitério de Hanover
  • Igreja Presbiteriana Coreana Americana
  • Igreja Presbiteriana Chinesa
  • Igreja Indígena Presbiteriana do Brasil

Segundo a Wikipedia, o Presbiterianismo é a quarta maior família denominacional protestante histórica no Brasil (atrás apenas dos batistas, adventistas e luteranos), sua membresia correspondendo a 0,48% da população do país. Se a população do Brasil for 210 milhões de habitantes, os presbiterianos representam basicamente um milhão de pessoas. Se nos lembrarmos de que o Presbiterianismo começou com uma denominação em 1959, e hoje, cerca de 160 anos depois, se tornou dezesseis, há que se concluir que, a cada dez anos, em média, uma nova igreja presbiteriana foi parida: em geral porque houve uma briga e uma divisão.

É basicamente sobre isso que quero falar. Mas vou rodear um pouco para chegar lá.

Mas ainda tenho algo a dizer na Introduçã que é de natureza pessoal e autobiográfica. Os dois primeiros substantivos do título são “Sofrimento” e “Morte”. A questão diretamente me afeta. Estou com 78 anos, idade com a qual meu pai morreu (em 5.3.1991), e sou enfartado (o enfarte foi em 1.3.2002 – completará vinte anos daqui a menos de 15 dias). Minha mãe morreu em 11.8.2008, dois meses antes de completar 84 anos. Pelo menos desde o enfarte, a questão da morte tem estado no foco e no horizonte de minhas preocupações. Ser confrontado, como eu fui, com a possibilidade concreta da própria morte em curto tempo é algo que nos dá foco e que marca a gente.

Tentarei  conduzir a discussão desses eventos que têm componente pessoal e biográfico de forma objetiva e tranquila, no contexto da religião/denominação em que fui criado, que é a religião cristã, na modalidade presbiteriana (assim designada nas Ilhas Britânicas, nos Estados Unidos, no Brasil e em vários outros países, embora seja designada, na Europa, como modalidade reformada calvinista, em contraste com outras modalidades reformadas surgidas no século 16: a luterana, a anglicana, a anabatista, e a radical, entre as principais, havendo quem trate as duas últimas como se fossem uma só).

Passemos, portanto, ao primeiro capítulo fora da Introdução — que será o mais pessoal e biográfico do artigo, com a possível exceção do capítulo quinto.

2. Minha Família Confronta a Morte

Mesmo deixando de lado o meu enfarte e a morte dos meus pais, a morte tem rondado a nossa família (a família Epprecht e Machado de Campos Chaves) nos últimos tempos, mesmo antes da pandemia, atingindo principalmente a parte materna da família de minha mulher, Paloma Epprecht e Machado de Campos Chaves.

Em 25.12.2017 morreu, de câncer, uma prima da Paloma, pelo lado materno, Cristina dos Santos Lima, nascida em 14.4.1962, estando, portanto, ainda relativamente jovem, com 55 anos, ao morrer..

No ano seguinte, em 25.8.2018, morreu a mãe da Cristina, tia Dirce Epprecht dos Santos Lima (nascida em 19.1.1942, com 76 anos, portanto), depois de uma doença razoavelmente prolongada.

No ano seguinte, em 4.10.2019, a mãe da Paloma (irmã da tia Dirce, tia da Cristina, e minha sogra), Ana Maria Epprecht Machado, que era a mais nova de cinco irmãos “Epprecht”, morreu, de septicemia causada por várias complicações, antes de completar 70 anos (nascida em 1.8.1950, ela completaria 70 anos em 1.8.2020).

A gente imaginava que minha sogra fosse sobreviver ao meu sogro, José de Oliveira Machado Neto (Machadinho), um pouquinho mais velho do que ela, pois nasceu em 2.3.1949, isto porque em 2013 se descobriu que ele estava com câncer – na próstata (mesma doença de que meu pai morreu em 1991). O Machadinho (como a maioria dos parentes o chama) foi operado, removeu a próstata, e teve de lidar com todos os problemas práticos, biológicos e emocionais que um homem que perde a próstata enfrenta. Mas ele sobreviveu até agora, passando pela perda da mulher, um pouco mais jovem do que ele. Antes de completar 71 anos, em 2.3.2020, ele veio morar conosco aqui no sítio. A situação de sua saúde tem tido altos e baixos, agravando-se bastante nas últimas semanas (escrevo isto em 19 de Fevereiro de 2022). De qualquer forma, ele já sobrevive à minha sogra em mais de dois anos, e sobrevive à descoberta do tumor na próstata em cerca de nove anos.

Depois da chegada da epidemia perdemos, mesmo que não diretamente em decorrência dela, mais um tio e uma tia da Paloma, ambos do lado Epprecht. O tio Augusto Epprecht Neto e a tia Maria Aparecida (Cida) dos Santos Epprecht (ela, viúva de Lavínio Epprecht, que foi o primeiro dos irmãos Epprecht a falecer, já há bastante tempo). Com a morte de Dirce Epprecht, em 2018, Ana Maria Epprecht, em 2019, e Augusto Epprecht, em 2020, em três anos seguidos, tendo Lavínio, marido da Tia Cida, falecido antes, só sobrou, dos cinco irmãos Epprecht, a tia Audir Epprecht dos Santos Costa, exatamente a mais velha dentre os irmãos — estará fazendo 82 anos agora em Maio deste ano, se Deus quiser.

Além disso, faleceram dois parentes mais distantes nossos, cunhados de um tio da Paloma, agora pelo lado paterno (o tio Abelardo Machado Júnior, irmão mais novo do pai da Paloma). Os dois falecidos eram irmãos, um deles pastor da Igreja Presbiteriana. Eles eram filhos de Rubens dos Santos, presbítero, que foi meu amigo, nos anos 1950 e 1960, na Igreja Presbiteriana do Parque dasNações em Santo André, da qual o meu pai foi pastor e que eu frequentei por algum tempo em minha adolescência e mocidade — durante a mesma época que família da Paloma frequentava a mesma igreja. Foi meu pai que fez o casamento Abelardo Machado Júnior e Miriam dos Santos Machado, muito tempo atrás. (Um dia escrevo sobre as coincidências, ou as ações da providência divina, que levaram a Paloma e eu nos encontrarmos e, apesar de eu ser 32 anos mais velho do que, concluirmos que havíamos sido feitos um para o outro…)

Volto à questão da morte na nossa família. Todos esses que morreram nos últimos cinco anos eram crentes de bastante fé. Um era pastor, outro, presbítero. Em todos os casos foram feitas, durante a doença final, correntes de oração pelo restabelecimento da pessoa enferma, mas, como eram todos crentes, os participantes dessas correntes estavam conscientes de que a vontade de Deus, ao final, seria feita – como, de fato, foi feita, mesmo que tenha sido com a morte daqueles que eram objetos das orações. De qualquer maneira, os parentes foram confortados pela crença de que os falecidos estavam, mortos, melhor do que estavam enquanto vivos (certamente não estariam sofrendo como sofreram no final de suas vidas) e pela crença de que todos nós iremos nos reencontrar, felizes, um dia, no Céu – só Deus sabendo quando será esse dia. Essas duas crenças confortam as pessoas e as fazem escapar do desespero e da depressão às vezes decorrente da morte de entes queridos muito próximos. Aqui o Sofrimento, especialmente aquele causado pela dor da Morte de um ente querido, mencionados no título, se encontra com a Religião, também mencionada no título. SE essas duas crenças, a de que os mortos “na fé” estão em condição melhor do que a nossa aqui, e a de que um dia nos reuniremos com eles no Céu, correspondem à verdade, ou são mera crença, é algo que será discutido adiante. Mas aqui entram em cena os temas da Verdade e da , mencionados no título também. E aqui começam os entrelaçamentos dos diversos conceitos mencionados no título.

3. Um Importante Caso Histórico

Escrevi minha dissertação de doutorado (durante 1970-1972) sobre David Hume, um filósofo escocês, nascido em 1711, em família presbiteriana, como, na Escócia, é comum, e falecido em 1776. Ele é considerado o maior filósofo de língua inglesa – ou mesmo de qualquer língua. David Hume era cético e crítico da religião cristã (e das outras também, mas concentrou sua crítica no Cristianismo). O cético professa não saber, ou mesmo que não é possível saber, as coisas que a pessoa de fé acredita serem verdades — sobre Deus, providência, milagres, vida futura, etc. Por isso muitos cristãos consideravam Hume um ateu e assim o designavam (o termo “infidel” era mais usado na língua inglesa do século 18 do que o termo “atheist”). Mas Hume sempre negou ser ateu. Ser ateu, segundo ele, seria acreditar que Deus não existe, que a ideia de providência divina não faz sentido, que milagres não aconteceram no início da era cristã, nem acontecem hoje, que não há vida futura e, portanto, que a morte é o fim de nossa participação no “drama cósmico”, que continua a se desenrolar sem nós. Para Hume, isto é muita crença, que está a exigir muita fé do ateu, porque há muito pouca evidência sobre essas coisas, tanto a favor, como contra. Hume, como cético, não acreditava nem que Deus existisse, nem que não existisse; nem que houvesse providência, nem que não houvesse; nem que milagres ocorressem, nem que fosse impossível que acontecessem; nem que houvesse uma vida após a morte, nem que a morte fosse o fim de tudo para a pessoa. Sobre todas essas questões ela confessava não saber nada, e, portanto, simplesmente “suspendia o seu juízo”: nem acreditava, nem desacreditava. Na verdade, ele estava convicto que ninguém conseguiria encontrar evidência a favor ou contra essas teses ou hipóteses.

No início de 1711 Hume ficou muito mal de saúde – câncer nos intestinos a gente chamaria hoje a doença que ele teve. Eles, no século 18, tinham outros nomes. Hume enfrentou com tranquilidade e sem qualquer medo a sua condição, elaborou, e revisou inúmeras vezes, o seu testamento, distribuindo o que tinha entre parentes e amigos e entre seus serviçais e outros prestadores de serviços. Chamou os amigos mais próximos, individualmente, não em grupo, para uma conversa de despedida, doou-lhes alguns livros (e, por vezes, dependendo da condição financeira deles, também algum dinheiro). Tratava a doença e a proximidade da morte como fatos naturais que é preciso encarar e enfrentar de modo sereno e natural. Nesse sentido, parecia-se muito com alguns dos estóicos que ele admirava tanto: Sêneca, Cícero, Marco Aurélio (este, o Imperador Romano).

Alguns amigos que Hume tinha, e que eram crentes, entre eles até mesmo pastores presbiterianos ou bispos anglicanos, ficaram impressionados com a serenidade de Hume diante da morte. Mesmo que não um ateu, sendo apenas um cético, ele, não crendo em Deus e na vida futura, deveria estar apavorado. Eles tinham dificuldade para entender como alguém que não acreditava em Deus, na providência, em milagres, e na vida futura, podia enfrentar a morte dessa maneira tão tranquila e sem medos. Uns acharam até mesmo que o ceticismo dele era apenas para consumo filosófico externo, coisa de fachada, e que, no fundo mesmo de sua alma, ele era um cristão fiel que, a despeito dos seus escritos e de suas conversas, acreditava na providência e na predestinação e, por conseguinte, tinha certeza de que seu lugar estava garantido na Glória.

O exemplo de Hume me causou impacto e me fez me interessar, até hoje, pelos Estóicos que ele admirava.

4. Uma Controvérsia Interessante

No século 19 houve uma controvérsia interessante entre dois intelectuais brilhantes e criativos: William K. Clifford, filósofo racionalista, e William James, psicólogo e filósofo pragmatista.

Clifford estava convicto que nós, por sermos animais racionais, ou seja, animais que possuem razão, temos o dever de exercer a nossa capacidade racional no seu limite, e que, portanto, não podemos crer em nada que seja irracional, ou mesmo que não seja claramente racional, isto é, comprovado pela razão, através de um apelo a fatos que lhe sirvam de evidência e a argumentos lógicos que sirvam para amarrar a questão com fatos remotos, mais distantes. Mesmo que o objeto da crença não for confirmado por evidência e argumento, mas seu contrário também não for, o homem racional não tem justificativa para crer, e, portanto, não deve crer. A coisa, para Clifford, era simples assim.

James pensava diferente, como filósofo pragmatista que era. Ele concordava com Clifford que, se houver razões claras e suficientes que mostrem que um determinado possível objeto de crença é racional, devemos crer nele. Mas se essa prova racional contrária inexiste, a gente está livre para crer ou não crer, por outras razões, de ordem pragmática, como, por exemplo: SE o indivíduo que crê nisso se torna mais feliz, no plano individual, ou vive melhor com seus semelhantes, no plano social, e, portanto, é, além de uma pessoa melhor, um melhor cidadão, ele não só pode como até deve crer, mesmo na ausência de evidência conclusiva a favor da crença. Se é indefinido que um possível objeto de crença é racional ou irracional, o campo fica aberto para crer, ou descrer, com base em outros tipos de razão de ordem pragmática: felicidade pessoal e o bem estar da sociedade, que é maior (segundo ele) quando as pessoas têm receio de desagradar a Deus con sua conduta errada ou anti-social.

5. Eu, de 1970 a 2010

Meus problemas com a religião cristã, e eu nasci presbiteriano, cresci presbiteriano, e aos 17 anos decidi que iria estudar para ser pastor presbiteriano (como meu pai foi durante quase 50 anos), foram vários. No Seminário Presbiteriano de Campinas, nos anos de 1964 a 1966, descobri — lendo, mais do que em aulas, e lendo textos não indicados pelos professores, mas pelos colegas — que havia determinados objetos de crença no Cristianismo e no Presbiterianismo, que eu, depois de muita reflexão, e apesar de os haver aceitado desde criança, não conseguia, em sã consciência, acreditar mais.

Os principais objetos de crença que eu passei a ter extrema dificuldade de aceitar foram:

  • A doutrina da Total Soberania de Deus, que acarreta a doutrina da Dupla Predestinação: desde antes da criação do mundo, Deus havia, não só previsto, mas determinado, que alguns seres humanos seriam destinados à salvação eterna e outros à condenação eterna, independentemente do que viessem a fazer ou crer – mesmo um recém nascido, que morresse poucas horas ou dias depois de nascer, se não explicitamente predestinado para a salvação eterna, passaria toda a eternidade sofrendo as piores agruras do Inferno.
  • A doutrina do Pecado Original: na Queda de nossos primeiros pais, todos nós, seus descendentes, automaticamente nos tornamos pecadores, independentemente do que façamos ou creiamos, não existindo livre arbítrio real em que o destino final de alguém dependa de quem ele é, do que ele faz, do que ele crê, não dos Insondáveis Decretos Eternos originais de Deus – um crença que, a meu ver, além de envolver uma enorme injustiça (cobrar nos filhos o pecado dos pais), torna inútil a pregação do Evangelho e o Trabalho Missionário, porque, afinal de contas, só os predestinados para a salvação eterna serão salvos, os predestinados para a condenação eterna sendo condenados ao Inferno, não importa o que façam ou creiam.
  • A doutrina da Vida Eterna: depois desta vida, teremos um de Dois Destinos, o Céu ou o Inferno, que dependem exclusivamente da Graça e da Soberania de Deus e não de como vivemos, do que fazemos ou daquilo em que acreditamos.

Por concluir que, por mais esforço que fizesse, não conseguiria acreditar nisso (nessas três principais doutrinas e em algumas outras, secundárias), desisti não só de ser pastor mas de ser membro de igreja, ficando cerca de 40 anos, de 1970 a 2010, por aí, fora da igreja.

[Alguns diziam que era isso mesmo: se você não acredita na doutrinas da igreja deve “pular fora”, antes de ser “posto fora”. Eu discordava desse preceito, porque gostava da “vida de igreja”, da convivência, da comunhão… Mas, mesmo assim, “pulei fora”.]

6. Uma Generalização da Posição de Karl Popper e William James

Mas durante todo esse tempo, e mesmo depois de ter voltado para a igreja em 2010, nesta ocasião indo para a Igreja Presbiteriana Independente, não mais a Igreja Presbiteriana do Brasil, continuei a ler a Bíblia (tenho cerca de 80 cópias ou edições, é preciso aproveitar) e livros de teologia, a pensar e a refletir com seriedade, estudando em especial a História da Igreja e do Pensamento Cristão. E o meu pensamento foi evoluindo (na minha forma de ver as coisas).

Em primeiro lugar, moveu-me sempre uma grande simpatia pela Heresia (afinal de contas, eu sempre fui politicamente liberal, e a heresia representa o direito e a liberdade de divergência no caso de crenças consideradas obrigatórias) e pelos hereges (colegas meus, alguns por muito menos causa e razão). Ao mesmo tempo, tive sempre uma significativa antipatia pela Ortodoxia (a definição de uma Reta Doutrina, uma verdade supostamente absoluta, irrevisável, cuja a aceitação é exigida de todos) e pelos ortodoxos (que sempre foram arrogantes, dogmáticos e intolerantes, pois se achavam possuidores e donos inquestionáveis da verdade. Os ortodoxos sempre causaram muito sofrimento para muita gente dentro da igreja, e muito cristão foi executado em fogueira por ser considerado herege).

Por outro lado, nunca fui, em segundo lugar, defensor do Ceticismo Radical (a doutrina de que nada é verdade, de que a verdade não existe) nem do Relativismo Total (a doutrina de que tudo é verdade, a partir de uma certa perspectiva ou ponto de vista, ou em determinado contexto cultural que lhe imprima sentido). Seguindo a orientação de Karl Popper, sempre estive convicto de que a verdade existe, mas que é muito difícil de encontrar: sendo nós humanos, não deuses, somos falíveis, precisamos sempre procurar a verdade, nunca podendo ter certeza de que a encontramos e de que estamos de posse dela para sempre (e de que aqueles que discordam de nós estão errados), pois sempre é possível que sejamos nós os que estão errados e os que de nós discordam estejam certos, razão pela qual a convivência pacífica e a discussão racional, em um clima de abertura e tolerância, com aqueles que pensam e agem diferente de nós é sempre bem-vinda – mais do que isso, necessária, se levamos a sério a busca contínua e permanente da verdade.

Em terceiro lugar, William James, mencionado atrás, propôs liberdade e tolerância em relação a questões acerca das quais a evidência é inexistente ou ambígua, ou então falível e provisória. Segundo a orientação de Popper, toda questão é, em última instância, desse tipo. Se essa tese faz sentido, e para mim ela faz, mesmo preservando as categorias de verdade e falsidade, devemos desvincular nossas crenças da noção de verdade (ou desvincular a noção de verdade de nossas crenças). Uma coisa é tentar determinar se um determinado enunciado, ou uma determinada doutrina, é verdade. É um trabalho necessário e útil, mas muito difícil. Outra coisa é determinar se devemos aceitar esse enunciado, ou adotar essa doutrina, independentemente de sua verdade ou falsidade, porque, aceitando-o(a), ele(a) contribui para que tenhamos uma vida pessoal mais serena, tranquila e feliz, e que sejamos mais tolerantes e úteis na sociedade procurando uma convivência mais pacífica e amistosa, independentemente da verdade ou falsidade das nossas crenças e das dos outros. Sai a questão da Verdade, e, por conseguinte, a questão da Ortodoxia, e entra a questão da aceitação de modos de vida que contribuam para que sejamos tenhamos bem-estar e sejamos felizes, no plano pessoal, e sejamos cordiais e amistosos no plano social.

7. Eu, Novamente, Agora

Sempre gostei da conviviabilidade, da comunhão, do sentido de irmandade da igreja, quando não há, nela, facções e brigas internas por causa de divergências doutrinárias, com acusações de heresia de um lado e de outro. E sempre admirei como a maioria dos cristãos enfrenta a questão do sofrimento e da morte – mas excetuo aqueles que deliberadamente buscam o sofrimento e o autoflagelamento e aqueles que procuram e provocam o martírio. O sofrimento em geral é bem gerenciado, se você acredita que ele tem o propósito de contribuir para o seu desenvolvimento, para sua melhoria como pessoa, para sua compreensão da reação dos outros quando eles estão em sofrimento. A morte é enfrentada com tranquilidade e naturalidade, pois sabemos que não somos imortais. A maior parte dos cristãos enfrenta a morte assim porque acredita que ela não é a última palavra. Tudo bem. O importante não é se eles, ou nós, estamos certos ou errados, estamos ou não de posse da verdade. O importante é como vivemos, como nos conduzimos, como nos relacionamos com os outros, em especial durante os momentos difíceis – e a possibilidade, a qualquer momento, e a proximidade da morte, em algumas circunstâncias, são alguns um dos mais difíceis.

Assim sendo, acredito que, em relação aos temas do título deste artigo, tenha me tornado um racionalista crítico, meio cético e muito pragmático.

Parece-me, hoje, que procedimentos relativamente simples, no seio da religião, como o de tirar a questão da verdade do centro e do foco, colocando ali a eudaimonia [auto-realização], a comunhão, a convivialidade, o bem-estar pessoal e social, bem como o de interpretar a fé, não como crença na verdade, mas como confiança, fidúcia, esperança de uma vida feliz e realizada, seriam um grande avanço.

Uns dirão que isso transformaria a religião em auto-ajuda. Acho que é o contrário: isso mostraria que a auto-ajuda, a meditação transcendental, o budismo, etc., tudo isso é fruto da religião, bem entendida, como criadora de comunidades de esperança, que fornece, aqui neste mundo, as primícias da vida em comunhão que esperamos viver um dia. As divergências, as lutas, os cismas vêm todos da crença na posse única de uma única verdade: colocando essa crença de lado, não haverá a criação de uma igreja presbiteriana a cada dez anos, em média, sempre por divergência e discordância doutrinária.

A comunidade de esperança representa e ilustra, não a comunhão dos crentes, mas a comunhão dos esperantes, daqueles que, como diria Paulo Freire, juntos esperançam (do verbo esperançar, mais do que simplesmente esperar).

No episódio da doença do meu sogro tenho me considerado bem-aventurado de estar em uma comunidade, presencial e virtual, que está certa de que, seja o que for que aconteça (e quando), tudo estará bem, porque todas as coisas contribuem para o bem dos que assim olham o mundo e a vida de forma positiva, e, portanto, são capazes de procurar e encontrar, em meio aos momentos mais duros, em especial diante da morte, aspectos positivos e benéficos, que nos permitem aprender, crescer, nos desenvolver, e viver melhor, pelos quais devemos sempre estar prontos para manifestar a nossa gratidão.

Em Salto, 17-19 de Fevereiro de 2022. Revisão mais ou menos significativa em 20-21 de Fevereiro de 2022.



Categories: Liberalism

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