Memória Autobiográfica

No dia 25 de Novembro de 2014 comprei dois livros do mesmo autor, em tradução para o Inglês. O autor é Douwe Draaisma, um psicólogo holandês, nascido dez anos depois de mim (em 1953), que se especializou no estudo da memória humana – algo que há bastante tempo me fascina (“bastante tempo” querendo dizer: desde que reconheci que estava envelhecendo e que minha memória não me obedecia mais tão pronta e rapidamente). Os títulos, com os respectivos subtítulos, dos dois livros são atraentes e chamativos. O primeiro tem, como título e subtítulo, Why Life Speeds Up As You Get Older: How Memory Shapes Our Past (Por que a Vida Fica Mais Rápida à Medida que Você Fica Mais Velho: Como a Memória Dá Forma ao Nosso Passado) e é de 2001, com tradução para o inglês em 2004. A combinação de título e subtítulo do segundo é The Nostalgia Factory: Memory, Time and Ageing (A Fábrica de Nostalgias: Memória, Tempo e Envelhecimento), e ele foi publicado no original holandês em 2008, com tradução para o inglês em 2013. 

A principal razão do meu interesse nesse tema (o tema, na verdade, é um só) está no fato de que, faz mais de 25 anos, comecei a escrever minha autobiografia (comecei exatamente no dia 5 de maio de 1997) – e me interessei não só em coletar informações sobre o meu passado mas em tentar confirmar ou refutar minhas memórias desse passado, convicto de quatro fatos

• Primeiro, nossas memórias são sempre do passado – não havendo memórias do futuro (algo que parece tão elementar que alguns leitores podem até questionar que seja preciso mencionar);

• Segundo, nem todas nossas memórias (do passado, naturalmente) são verídicas, isto é, são memórias verdadeiras de eventos, fatos e coisas que realmente aconteceram ou existiram e que aconteceram ou existiram na forma exata em que nos lembramos deles, havendo também memórias falsídicas, isto é, memórias de eventos, fatos e coisas que de fato, ou na realidade, não aconteceram ou existiram, ou, pelo menos, não aconteceram ou existiram na forma em que nos lembrar deles (essas memórias que chamo de falsídicas talvez devendo ser chamadas de pseudomemórias — falsas memórias, pretensas memórias); 

• Terceiro, a área, a divisão, ou o compartimento de nossa mente que é responsável pelas nossas memórias (as pessoais e as impessoais — vide adiante) não só esquece muitas coisas de que um dia já lembramos como também inventa muitas memórias que nunca aconteceram — algo meio chocante, mas verdadeiro; 

• Quarto, não raro, em especial quando vamos ficando mais velhos, tornamo-nos mais convictos da verdade das memórias que nossa mente inventa do que das lembranças verídicas, aquelas que nossa mente simplesmente coleta, guarda e, oportunamente, disponibiliza para nós — algo que apresenta um sério desafio para os pesquisadores. 

Quanto aos dois últimos fatos (o terceiro e o quarto), é sempre bom lembrar três frases memoráveis de três autores igualmente memoráveis: um do século 18, outro do século 19, e outro do século 20, que, neste caso, para o meu gaudio, ainda continua vivo na terceira década do século 21: François-Marie Arouet (Voltaire), Samuel Langhorne Clemens (Mark Twain), e Mário Vargas Llosa. Adoro os três. Uso o adjetivo “memorável” para qualificar tanto suas frases como os próprios, porque os três estavam interessados, de certo modo, nos fatos que eu descrevi atrás. Para ser coerente com minha tese, não vou buscar nos seus livros as frases de cada um deles: vou citá-las livremente, isto é, de memória (na qual vou confiar a despeito de estar vivendo meu octogésimo ano de vida). Voltaire uma vez disse que ele não só tinha conhecimento de muitas verdades, como tinha inventado várias delas… Twain, na mesma veia, disse, quando já velho, que é falso que nossa memória fique mais fraca à medida que envelhecemos, pois a dele, insistiu, com o passar dos anos, se tornou ainda melhor, tendo ele então inúmeras lembranças até mesmo de coisas que nunca aconteceram… O terceiro deles, o peruano Vargas Llosa, é, na minha opinião, o maior e melhor dos escritores mais recentes (deixo os clássicos de fora) a produzir sua obra em espanhol ou português, tanto que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 2010. O leitor pode tentar contestar chamando a atenção para o fato de que outros, na mesma categoria, também receberam seus Prêmios Nobel, como o colombiano Gabriel Garcia Márquez e o português José Saramago, mas, com franqueza, não os considero dignos de figurar no mesmo time de Vargas Llosa – e não apenas porque ambos eram (ou foram) comunistas. Enfim, de Vargas Llosa temos não apenas uma frase, mas um livro inteiro sobre o assunto, cujo título é La Verdad de las Mentiras (A Verdade das Mentiras) – ou seja, “A Verdade das Coisas que Nós Inventamos” – tanto sobre os outros, reais ou livremente criados, como sobre nós mesmos, em nosso eu real ou no nosso eu inventado… Segundo ele, as verdades inventadas, pelo menos as da literatura injustamente chamada de ficção, em geral são mais importantes e profundas do que as verdades das quais se diz que foram encontradas ou descobertas por aí, não deliberadamente inventadas. (By the way, uma autora latinoamericana que já deveria ter recebido o Prêmio Nobel dela, a chilena Isabel Allende, escreveu um livro sobre o Chile, país em que nasceu, que tem o título de Mi País Inventado. Se até o país em que ela nasceu foi inventado por ela, o que dizer do resto?). Mas encerro este parágrafo enorme, de quase uma página, e passo a discutir um pouco algumas passagens dos livros de Douwe Draaisma.

O primeiro capítulo do primeiro livro mencionado discute o fato (e é um fato, sim) que nossa memória, em especial quando envelhecemos, passa a ter algo parecido com vontade própria: ela não nos entrega aquilo que queremos, desejamos, precisamos e, por conseguinte, procuramos lembrar, mas aquilo que ela quer, mesmo que não tenhamos nenhum interesse no que ela está nos fornecendo. Para usar um exemplo típico entre escritores e acadêmicos, há momentos em que queremos, desejamos, na verdade, precisamos nos lembrar de onde foi, nas coisas que lemos ultimamente (sic: não se trata, necessariamente, de coisas antigas!), que vimos uma determinada afirmação, ou uma referência a um determinado fato, e não nos lembramos. Mas, por outro lado, nossa memória está cheia de besteiragens das quais não temos o menor interesse de nos lembrar agora. Às vezes uma informação ou um fato nos vem à memória e nós dizemos a nós naquele momento. Às vezes dizemos: “Não posso me esquecer disso!” – e cinco minutos depois já não nos lembramos do que foi que nós dissemos que não poderíamos esquecer. Pior, às vezes nem nos lembramos haver dito que não poderíamos nos esquecer de alguma coisa… A memória, especialmente de nós, os mais velhos, tem vontade própria: faz o que quer, lembra-se do que ELA quer se lembrar, não daquilo de que NÓS queremos nos lembrar… 

O oposto também acontece. Às vezes presenciamos algo chocante, ou alguma coisa ruim ou desagradável acontece com nós mesmos, de que preferiríamos nunca nos lembrar de ter presenciado ou vivenciado – mas a nossa memória tem o que meu pai chamava de “espírito de porco”: num caso assim, ela nunca deixa a gente se esquecer do fato, a coisa presenciada ou vivenciada parece nunca querer sair de nossa memória, nem mesmo quando a memória começa a atrapalhar a nossa vida, a perturbar o nosso sono, a nos deprimir, obrigando-nos – (que Deus nos livre!) – a consultar um psicólogo… (pior ainda, se o leitor é homem hétero, uma psicóloga: a gente pode até se apaixonar por ela!!!). (Se o leitor pensa que psicólogo ajuda a gente apenas a se tornar consciente de coisas ruins que nos aconteceram e que nós reprimimos, porque elas eram traumatizantes, é bom saber que ele, ou ela (the psychologist), também nos ajuda a reprimir lembranças, verdadeiras ou falsídicas, que estão nos atormentando, fazendo com que deixemos de nos lembrar daquilo que nos perturba, ou que faz com que nos sintamos culpados – indevidamente, é natural. Digo isso à guisa de exemplo.

Psicólogos (segundo Draaisma, e ele deve saber, porque é um deles) começaram a chamar uma área da nossa memória, aquela que lida com acontecimentos estritamente pessoais, de memória autobiográfica. Ali ficam armazenadas as memórias daquilo que vivemos e vivenciamos, relacionados à nossa própria pessoa, desde a hora que a nossa mente começa a colecionar essas memórias. (Quando isso se dá é uma questão aberta, mas uma coisa é certa: nenhum de nós se lembra do momento de nosso nascimento, tenha ele sido por parto normal ou por cesariana, quem estava presente, quem fez ou ajudou o parto, etc.). Eu me lembro do parto do meu irmão mais novo (três anos e meio mais novo), o que significa que eu tenho memórias de algumas coisas que eu vivenciei quando tinha três anos e pouco. Mas é que foi algo bastante impactante – que eu, talvez, se tivesse tido a escolha, teria preferido não me lembrar, mas lembro até hoje… Ou será que eu me lembro, mesmo, daquele fato, ou apenas de um outro fato, o de que minha tia Alice, irmã de minha mãe, e que presenciou o parto, feito em casa, vivia contando a história de como eu presenciei o nascimento do meu irmão Flávio? O que ficou incorporado à minha memória pode ter sido apenas o relato do fato feito pela minha tia do coração, não o fato em si… Saber quem há de?

É forçoso reconhecer que nossa memória autobiográfica, as coisas que aconteceram com nós próprios, está entre nossas memórias mais preciosas. Mas exatamente por nos serem tão importantes, há uma série de coisas que aconteceram conosco, ou que nós fizemos, que nós preferiríamos que não tivessem acontecido, ou que nós não tivéssemos feito. E outras, que não aconteceram conosco, ou que nós não fizemos, mas que nós, hoje, gostaríamos muito que tivessem acontecido ou que tivéssemos feito. Como a memória tem uma vontade própria, se ela está de bem conosco, quem sabe ela possa nos ajudar a nos esquecer das coisas ruins que nos aconteceram, ou que fizemos, e a nos lembrar, à la Twain, de coisas que nunca aconteceram, ou, à la Voltaire, que ela possa nos ajudar a inventar muitas verdades que façam bem ao nosso ego, fortalecendo-o, que nos permitam viver melhor, sem consciência de frustrações. Dizem os entendidos que é melhor nos arrepender de algo errado que fizemos do que viver frustrados, nos culpando por não ter feito algo que poderia ter levado nossa vida numa nova direção, permitindo que fizéssemos progresso significativo em direção à felicidade e à eudaemonia – à realização pessoal.

Digamos, em outras palavras, que o compartimento de nossa mente que gere nossa memória possa, pelo menos, agir como um editor camarada de nossa memória autobiográfica, que omite algumas lembranças que não ficariam bem em nossa autobiografia, isto é, que apaga toda e qualquer referência a elas, e que introduz, aqui e ali, algumas memórias que, para sermos desnecessária e exageradamente verdadeiros, não correspondem a nada que de fato aconteceu, mas apenas a algo que poderia muito bem ter acontecido, e ninguém, ou pouca gente, sabe se aconteceu ou não, apenas nós… Com o tempo, nós nos acostumaremos à versão (à narrativa), e não aos fatos reais, e passaremos acreditar, até com grande convicção, que o que foi relatado é o que de fato ocorreu (ou não ocorreu), conforme o caso…

Simone de Beauvoir, a companheira de Jean-Paul Sartre, tem muitos textos considerados autobiográficos (e biográficos, em relação aos outros), disse, a quem interessar pudesse, que ninguém deveria confiar que o que ela escreveu era fiel aos fatos wie sie eigentlich gewesen sind (como eles de fato aconteceram), porque, em seus escritos, autobiográficos, biográficos e puramente ficcionais, ela não tinha nenhum compromisso com a verdade… Será que ela estava apenas exagerando em sua sinceridade ou que todo mundo faz isso, mas faz sem dizer? Até mesmo os historiadores profissionais, com suas “narrativas fáticas”, que não passam de “Fake History”… (Hoje em dia a gente vê isso sendo produzido na nossa frente, e até, de vez em quando, colabora um pouco no empreendimento). 

Por ora é só. Há muito mais nos dois livros de Draaisma que é interessante, mas só pretendo introduzir o assunto. 

Salto, em 21 de Dezembro de 2022



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