Biografias de C S Lewis – Uma Resenha

[Este artigo é publicado isoladamente, mas ele faz parte de um todo maior que será oportunamente divulgado. Ele está publicado também em meu blog C S Lewis Space. EC]

CONTEÚDO:

1. Preliminares

2. Biografias de Pessoas que Conviveram com Lewis e lhe São Amigas

A. A Biografia Autorizada
B. O “Companion & Guide
C. Mais Duas Biografias

3. Biografias de Pessoas que não Conviveram com Lewis e lhe São Amigas

A. As Três Biografias de Alister McGrath
B. Duas Obras de Cunho mais Acadêmico

4. Duas Biografias de Caráter Sui Generis

5. O “Culto de/a Lewis” (na Visão de A N Wilson)

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1. Preliminares

Dentre os livros que tenho, mais de cem dizem respeito a C S Lewis. Ele podem ser divididos, mais ou menos igualmente, em duas grandes categorias: livros escritos por C S Lewis e livros escritos sobre C S Lewis. Só os meus livros de e a respeito de um outro autor são em maior número: David Hume, filósofo escocês sobre o qual escrevi minha tese de doutorado, defendida em 8 de Agosto de 1972 — daqui um mês fará 48 anos.

Entre os primeiros — livros de autoria do próprio C S Lewis — estão livros de todos os tipos: livros de poemas, livros de crítica literária e história da literatura, livros de ficção, alguns voltados para adultos e outros voltados para crianças e adolescentes, livros de cunho religioso e teológico, e livros de natureza autobiográfica (o mais importante dessa última categoria sendo uma autobiografia da primeira parte de sua vida, até meados dos anos 30 do século passado).

Entre os livro escritos sobre C S Lewis há biografias gerais, que cobrem sua vida inteira (período por período, do nascimento até a morte), há biografias que tratam de segmentos específicos de sua vida (de sua infância e juventude, por exemplo, o da fase em que ele esteve casado, seu casamento tendo se dado quando ele já era um homem maduro, se não velho: tinha quase 58 anos), há livros que analisam o mundo intelectual em que ele viveu (as ideias de seu mundo, aquelas que ele aceitou tranquilamente, e que foram poucas, e aquelas que ele criticou, em alguns casos com veemência, e rejeitou, a maioria), e há livros que analisam um ou mais aspectos de sua obra e que, em geral, por causa da quantidade enorme de seus livros, se dedicam, em regra, a um ou outro aspecto dessa obra, como sua ética, ou sua rejeição da modernidade. Não conheço nenhum livro que analise, em profundidade, toda a obra de C S Lewis, nem mesmo todas as principais, embora haja um que chega mais ou menos perto disso, e que mencionarei, no devido momento, de autoria de Walter Hooper.

Os livros escritos pelo próprio C S Lewis (ele foram todos escritos a mão, porque ele não sabia datilografar — aquilo que hoje chamamos de digitar) são sempre interessantes — mas os livros sobre ele também não deixam de ser, com uma ou outra exceção (e os que realmente não vale a pena ler eu, em geral, nem discuto — o que não quer dizer que os que não menciono neste artigo não valham a pena ler…).

Os livros sobre C S Lewis podem ser classificados de várias maneiras:

  • Livros de pessoas que conviveram com ele, como ex-alunos, colegas, e amigos, os quais em geral, gostam dele e o admiram;
  • Livros de pessoas que não conviveram com ele, os quais podem ser classificados em três tipos principais:
    • Livros de quem é simpático a ele e o defende (quando necessário) e elogia (quando recomendável);
    • Livros de quem, por uma ou mais de uma razão, não gosta muito dele e o critica;
    • Livros de quem se pretende neutro e objetivo, procurando descrever mais do que avaliar.

Das pessoas que conviveram com ele, pouquíssimas pessoas que não gostavam dele (e havia quem o detestasse) se deram ao trabalho de escrever um livro sobre ele. Neste caso, apenas fizeram referências desairosas e críticas a ele em livros cujo foco principal não era ele, era algum outro tema.

Das pessoas que não conviveram com ele, há muitos que não gostavam e ainda não gostam dele. Algumas dessas pessoas escreveram livros críticos a ele, em geral, ou, mais frequentemente, em críticos de alguns aspectos específicos de sua vida e obra (sua contribuição à crítica literária e à história da literatura; sua produção literária, tanto em prosa como em poesia, dedicada a adultos; sua produção literária dedicada a crianças; sua teologia, em especial sua defesa (apologia) do Cristianismo.

Registre-se ainda que, por vezes, alguns autores pretendem ser uma coisa, mas acabam sendo outra. O caso mais comum é o de pessoas que pretendem ou alegam ser objetivas e neutras, mas, no fundo, têm alguma antipatia para com ele, como pessoa, ou discordam frontalmente de alguns aspectos de sua obra e de suas ideias.

Isso dito, vou mencionar sucintamente os principais livros sobre C S Lewis que eu tenho usado, em maior ou menor intensidade e profundidade, para escrever meus artigos sobre ele — artigos que, oportunamente, espero transformar em um livrinho. . .

2. Biografias de Pessoas que Conviveram com Lewis e lhe São Amigas

Dentre as biografias de C S Lewis escritas por gente que o conheceu e conviveu com ele, as quatro de que mais gosto e que mais tenho utilizado são mencionadas a seguir.

A. A Biografia Autorizada

Em primeiro lugar, uma biografia a quatro mãos, escrita por duas pessoas ligadas a Lewis, Roger Lancelyn Green e Walter Hooper, com o título (atual) de C. S. Lewis: The Authorised and Revised Biography (Harper, New York, 1974 [1st ed], 2002 [rev. ed.]). O título da primeira edição, de 1974, era C. S. Lewis: A Biography. O título da segunda edição, de 2002, portanto, é mais incisivo: o “a” (uma) virou “the” (a) “Biography” — de C. S. Lewis: Uma Biografia passou para C. S. Lewis: A Biografia. Para que não pairassem dúvidas, foram inseridos ainda os termos “Authorised” (Autorizada) e, naturalmente, “Revised” (Revisada).

No Prefácio da segunda edição Walter Hooper, um dos autores, o mais novo deles, esclarece que, dada a morte do outro autor, em 1987, a revisão foi feita exclusivamente por ele, Hooper — embora os dois autores tenham frequentemente discutido o que precisaria ser incluído e modificado em uma nova edição. A morte de um dos autores, em si, normalmente não significa muita coisa para um livro que é reeditado: é algo que acontece com frequência. No caso, a contribuição de Green à primeira edição, também parece ter sido pequena, limitando-se ao uso feito de um diário feito por ele quando de uma viagem sua e de C S Lewis, ambos acompanhados de suas esposas, à Grécia, viagem que acabou por ser a última viagem significativa feita por Lewis e Joy Davidson Lewis, sua mulher, que já estava em seus últimos dias de vida. A viagem foi feita contra recomendação médica, para a atender ao desejo expresso de Joy de conhecer a Grécia antes de morrer. (Curioso, não? Por que a Grécia e não a Palestina, já que ela era uma judia que havia se convertido ao Cristianismo, duas religiões para as quais a Palestina era historicamente importante?)

A segunda edição contém capítulos novos e revisão dos antigos, sendo bem mais longa. Hooper poderia até mesmo ter assumido registrado apenas o nome dele como autor, dando o devido crédito, no prefácio, à contribuição de Green. Isso não seria inusitado. A razão pela qual Hooper aparentemente fez questão de manter o nome de Green como coautor, quinze anos depois de este estar morto, sem ter contribuído nada para a significativa revisão, e, assim, não tendo contribuído tanto para a obra revisada como um todo, se deve ao fato de que C S Lewis havia solicitado a Green que escrevesse sua biografia… Logo, o “Authorised” que Hooper incluiu no título da segunda edição só poderia ser mantido se Green continuasse a ser considerado um dos autores…

Consta que Hooper, que se tornou secretário particular de Lewis no final da vida deste, poucos meses antes de sua morte, em Junho de 1963, solicitou a Lewis, quando este já estava próximo da morte, permissão para escrever sua biografia autorizada, ao que Lewis teria respondido que já havia encarregado Green, seu ex-aluno e grande amigo há muito tempo, e que era um escritor (inclusive biógrafo) experiente e consagrado, que fizesse isso, e que Hooper, portanto, se entendesse com ele. O resultado foi uma coautoria, decorrente, em parte, da generosidade de Green, e, em parte, da proatividade e (até certo ponto) agressividade do jovem Hooper em relação a qualquer questão que contribuísse para que ele se tornasse, oportunamente, como de fato veio a se tornar, a grande autoridade mundial em C S Lewis.

Na qualidade de secretário pessoal de Lewis quando este morreu, e de pessoa que passou a morar na própria casa de Lewis, depois de sua morte, e que assim passou a conviver com o irmão (mais velho) de Lewis e com seu enteado mais novo (ele tinha dois), Hooper veio a ter considerável controle, desde a morte de Lewis, em 1963, dos papéis que Lewis deixou em casa ou em editoras ao morrer. Durante 12 anos, até 1975, Hooper não foi o responsável oficial pela herança intelectual de Lewis, posição que só veio a alcançar em 1975: até então era apenas um assessor literário contratado pelos testamenteiros.

De qualquer forma, essa biografia, sendo autorizada,  e sendo escrita por quem foi, tende a ser muitíssimo bem documentada, como não poderia deixar de ser, e muito sensata e equilibrada, e, portanto, confiável, embora tenha sido escrita por um grande amigo de Lewis e um admirador de Lewis (por carta, desde 1951) e que veio a ser (por pouco tempo, a partir de Junho de 1963 até sua morte), seu secretário pessoal). O único reparo a ser feito a essa biografia é que ela contem, na segunda edição, em um ou outro lugar, uma excessiva valorização do papel de Hooper na vida de Lewis, como se ele tivesse convivido presencialmente com Lewis por muito tempo — por correspondência, parece incontestável a sua alegação de que eles haviam se correspondido por doze anos antes de se conhecerem. Mas o contato pessoal, face-a-face, de Hooper com Lewis foi muito curto. Contratado em 7 de Junho de 1963, como já observado, ele teve de retornar aos Estados Unidos em Setembro para executar, por mais um período letivo, até Dezembro, o seu trabalho de professor na instituição em que trabalhava. Assim, ficou ao lado de Lewis menos de três meses. Só em Janeiro de 1964, depois de Lewis já estar morto e enterrado, ele voltou para a Inglaterra, não mais para exercer o papel de secretário pessoal, mas, agora, mediante contrato com os responsáveis pela herança de Lewis, para coletar e organizar os seus trabalhos ainda não publicados, elaborar uma lista oficial de suas publicações, e por alguma ordem nos papeis de um homem que era relativamente desleixado com seus papeis.

Mas, como já assinalei, o fato mais importante é que, a partir desse momento, ele passou a ter contato chegado, ganhando sua confiança,  com o irmão mais velho e com o enteado mais novo de Lewis, que supervisionavam a execução do legado intelectual dele. Registre-se, mais uma vez, que é sabido e notório que, a despeito de suas muitas virtudes, Lewis sempre foi meio desmazelado com seus papéis pessoais e profissionais, jogando fora, por exemplo, os originais de suas obra depois de elas terem sido publicadas, algo que muita gente, eu inclusive, acha um absurdo. Poucos manuscritos de suas obras sobraram. Quando Hooper se tornou secretário particular de Lewis, em 1963, ele tinha 32 anos e Lewis estava às portas da morte (embora não soubesse). Hooper está vivo até hoje e deverá completar 90 anos o ano que vem (2021). Mais sobre essa história, na sequência e adiante.

B. O “Companion & Guide

Em segundo lugar, mais uma obra de Walter Hooper, escrita entre as duas edições da biografia mencionada no item anterior: C. S. Lewis: Companion & Guide (Harper, San Francisco, 1996), que parece ter sido comercializado também com o título de C. S. Lewis: A Complete Guide to His Life and Works. (Provavelmente seja o mesmo livro com títulos diferentes dos dois lados do Atlântico, como acontece com livros no Brasil e em Portugal.)

Essa obra, que é bem mais do que uma simples biografia (como o título já indica), tendo 940 páginas em fonte de corpo pequeno, contém uma biografia mais resumida de Lewis, mas mesmo assim, com 120 páginas (pp.1-120), uma das mais completas e confiáveis cronologias de Lewis (pp.121-126), um longo resumo, com boa análise, de todos os seus principais escritos, devidamente classificados em “Juvenilia“, “Poetry“, “Autobiographical“, “Novels“, “Theological Phantasies“, “Theology“, “Chronicles of Narnia“, “Literary Criticism” (pp.127-548), uma discussão das “Key Ideas” de Lewis (pp.549-614), duas valiosas seções, uma, “Who’s Who“, sobre as principais pessoas na vida de Lewis (pp.615-744), e outra, “What is What“, sobre os principais lugares na vida dele (pp.745-798), e uma bem completa (até a data da sua publicação) “Bibliography of C. S. Lewis’ Writings” (pp.799-884). “Acknowledgements” (pp.885-886) e um valioso “Index” (pp.887-940) completam a obra.

Pode parecer esquisito dizer que a Bibliografia é bem completa “até a data da sua publicação”, porque, se Lewis morreu em 1963, e o livro foi publicado em 1996, que outra publicação poderia vir à tona depois dessa data? A questão é que até hoje aparecem livros inéditos de Lewis, resultado de manuscritos que são encontrados e que não haviam ainda sido publicados, cartas dele para várias pessoas, que só foram localizadas recentemente, etc. E Hooper é um incansável caçador dessas relíquias. Na opinião de alguns, publica até o que Lewis, possivelmente, não considerava para publicação, ou digno de publicação.

Apesar de a ter colocado em segundo lugar nesta minha lista, por ser muito longa e muito mais do que uma biografia, este “Companion & Guide” talvez seja a obra mais útil para consultas por quem não tem aceso a muita literatura secundária sobre Lewis.

C. Mais Duas Biografias

Em terceiro lugar, uma outra biografia escrita por um dos ex-alunos de C S Lewis (que foi aluno dele lá no início da sua vida profissional), que também se tornou seu grande amigo ao longo do tempo, George Sayer. O título dessa biografia é Jack: A Life of C. S. Lewis (Crossway Books, Wheaton, IL, 1988, 1994). Percebe-se a intimidade que o autor tinha com o biografado já no título da obra: “Jack”, o apelido de C S Lewis. Embora muita gente o chamasse de Lewis, ninguém o chamava de Clive, seu nome de batismo. Desde que ele era pequeno, ficou Jack — na sua família, Jacks.

Se essa biografia é considerada por alguns como, até certo ponto, hagiográfica (não concordo que seja), por ter sido escrita por um ex-aluno e bom amigo, alguém que, claramente, gosta do biografado e o admira com sinceridade, que sobre ele escreve com o maior respeito, e que, na dúvida, fica na posição que entende ser a favor dele, ela não é menos útil por isso. Pelo contrário. Mesmo que possa ser considerada, em um ou outro aspecto, hagiográfica, ela é um trabalho sério de historiografia, e, talvez mais importante, serve de excelente contrapeso e contraponto às duas biografias de C S Lewis escritas por A. N. Wilson, que são, em muitos aspectos, bastante críticas, como irei mencionar adiante, quando uma interpretação mais branda e neutra seria cabível. No caso de Wilson, em caso de dúvida, ele geralmente toma uma posição que deslustra a memória de Lewis.

Em quarto lugar, um outro livro biográfico interessante, também escrito por gente que conheceu bem C S Lewis, é o editado por James T. Como, C. S. Lewis at the Breakfast Table and Other Reminiscences (Harcourt, New York, 1979, 1992 [New Edition]), que contém reminiscências de vinte e quatro pessoas, além de um artigo introdutório de Como (que, curiosamente, é o único que não conheceu Lewis pessoalmente).

Vale a pena ler essa obra, embora a natureza de cada reminiscência seja muito pessoal e, até certo ponto, subjetiva. Mas várias delas são bastante interessantes e mesmo curiosas. No conjunto, há uma razoável desigualdade na contribuição das diversas publicações.

3. Biografias de Pessoas que não Conviveram com Lewis e lhe São Amigas

Entre as biografias escritas por gente que não conviveu com Lewis, mas que por ele tem simpatia, menciono cinco. As três primeiras são de um mesmo autor, o conhecido teólogo e historiador do pensamento cristão e da igreja, Alister E. McGrath, que, nascido em 1953, tinha dez anos quando Lewis morreu. É surpreendente que uma só pessoa tenha escrito três livros diferentes sobre um mesmo autor, cada um enfatizando um aspeto dele!

A. As Três Biografias de Alister McGrath

A primeira biografia, e aquela que é uma biografia no sentido mais estrito da palavra, é C. S. Lewis: A Life, que traz na capa (mas não dentro) o subtítulo Eccentric Genius, Reluctant Prophet (Hodder & Stoughton, Londres, 2013 – ano em que a morte de Lewis completou 50 anos!). Há tradução para o Português com o título A Vida de C. S. Lewis: Do Ateísmo às Terras de Nárnia, que nada tem que ver com o título original. Em comentário incluído na capa do livro, N. T. Wright, famoso teólogo contemporâneo, afirma: “A penetrating and illuminating study” — a biografia vem bem recomendada, portanto.

O livro tem uma organização cronológica, em cinco partes.

  • A primeira parte, com três capítulos, vai de 1898 a 1918, ou seja, do nascimento até o final da educação básica (pré-universitária) de Lewis e o início, propriamente dito, depois do atendimento de uma convocação para lutar na Primeira Guerra Mundial, dos estudos de Lewis em Oxford.
  • A segunda parte, com sete capítulos, vai de 1918 a 1954, cobre a sua participação na guerra, quando já havia sido aceito pela Universidade de Oxford e morava na cidade, e sua vida em Oxford, incluindo os seus anos de estudos (1919-1925) e os seus quase trinta anos de trabalho naquela famosa universidade (1925-1954).
  • A terceira parte, curiosamente, tem dois capítulos não vinculados, em senso estrito, a um período, em particular, da vida de Lewis, mas dedicados a discutir um conjunto específico de obras: The Chronicles of Narnia (que foram sete crônicas, originalmente publicadas separadamente, em diferentes datas). O primeiro dos dois capítulos foca a questão de como Lewis chegou a escrever essa importante obra de ficção para crianças e adolescentes e de como ele veio a encarar o papel da imaginação na vida de uma pessoa, em especial de um escritor, ao lado da razão, da experiência, e das emoções. O segundo dos dois capítulos da terceira parte discute, de forma mais profunda, a (cronologicamente) primeira (e, no entender de McGrath, a melhor) das sete crônicas que compõem Narnia: “The Lion, the Witch and the Wardrobe“.
  • A quarta parte, com dois capítulos, vai de 1954 a 1963, um capítulo cobrindo de sua ida para Cambridge (1954) até a morte de sua mulher (1960), o outro cobrindo da morte da mulher até a sua própria morte (1963).
  • A quinta parte, final, com um capítulo só, não está, da mesma forma que a terceira parte, vinculada a um período específico de sua vida, na verdade discutindo sua pós-vida: “The Lewis Phenomenon“.

A quinta parte contém uma discussão que eu, pessoalmente, reputo fantástica de um tema  que é retomado no último capítulo da segunda obra, a seguir descrita.

A segunda biografia de McGrath é mais uma biografia intelectual, The Intellectual World of C. S. Lewis (John Wiley & Sons, Chichester, 2014), publicada um ano depois do livro anterior. Nessa obra McGrath se preocupa mais com as ideias de Lewis, que, na obra, são discutidas na forma de “ideias chave” (“key ideas“). De cada uma dessas ideias, sete ao todo, McGrath estuda o seu pedigree, por assim dizer, e o seu mérito. O oitavo capítulo trata do mesmo assunto da quinta parte do livro anterior.

  • Em primeiro lugar, a ideia de uma autobiografia, tipificada especialmente por Surprised by Joy [Surpreendido pela Alegria, na tradução para o Português], mas que é retomada em Grief Observed [A Anatomia de uma Dor: Um Luto em Observação, na tradução para o Português], tendo também sido usada, de forma alegórica, em The Pilgrim’s Regress, livro que é unanimemente considerado autobiográfico.
  • Em segundo lugar, o tipo de ateísmo que Lewis adotou durante cerca de 25 anos, dos dez ou onze anos aos cerca de trinta e cinco ou trinta e seis anos, nas décadas de 10, 20 e 30 do século 20 — que não foi, como muitas vezes é o caso, um “ateísmo relutante”, que sente saudade dos tempos de fé, mas um ateísmo abraçado com gosto, visto como uma espécie de liberação.
  • Em terceiro lugar, a questão dos mitos, e até que ponto eles podem revelar a verdade, e o seu papel na sua conversão para o Cristianismo (que ele não considerava uma reconversão, porque concluiu que nunca havia se convertido ao Cristianismo antes).
  • Em quarto lugar, o que McGrath chama de “a metáfora ocular”, que envolve o uso dos conceitos de luz, sol, e visão, na obra de Lewis, aparentemente dando uma importância maior ao visual do que ao audível e aos demais processos sensoriais.
  • Em quinto lugar, o conceito de Alegria, termo sempre escrito com inicial maiúscula, que é relacionado ao chamado “argumento do desejo”, apresentado por Lewis.
  • Em sexto lugar, o método apologético de Lewis, envolvendo razão, experiência e imaginação. (Talvez falte explicitar a emoção nesse contexto, fazendo de uma trindade uma quaternidade.)
  • Em sétimo lugar, a proposta de um “Mero Cristianismo”, um Cristianismo focado nos essenciais, que não considera, e mesmo desdenha, as questões secundárias de doutrina, conduta e organização eclesiástica, em grande parte responsáveis pelos cismas e pelas divisões do Cristianismo, e, no caso do Protestantismo, pelo denominacionalismo.
  • Por fim, em oitavo lugar, a tese (de McGrath) de que a ideia de um “Mero Cristianismo” solapou as ideias de igreja e denominação, bem como a ideia de que uma boa teologia é feita somente por teólogos profissionais, nunca por teólogos leigos e populares, em linguagem acessível, em livros curtos e baratos…

Vale a pena ler, em especial a tese desse oitavo capítulo. Ela explica a aceitação de C S Lewis por pessoas de basicamente todas as denominações protestantes, e até por católicos e por desigrejados. E explica por que parece haver, a partir de meados dos ano oitenta, uma verdadeira guerra de bastidores sobre quem vai conseguir “engaiolar” o livre pássaro que é Lewis: se os evangélicos conservadores de Wheaton, nos Estados Unidos, ou os católicos conservadores ligados a Walter Hooper, que, apesar de americano, se radicou na Inglaterra, e representa, em relação a Lewis, uma tendência mais conservadora ainda do que a dos evangélicos de Wheaton, apresentando um Lewis menos evangélico e mais “high church” e, por conseguinte, mais próximo da Igreja Católica. Registre-se que Walter Hooper, que foi ordenado sacerdote na Igreja Anglicana, posteriormente se converteu à Igreja Católica e é hoje um padre católico, devidamente aposentado de seus deveres sacerdotais, mas ainda zelando, aos quase 90 anos, pela obra e pelo bom nome de C S Lewis, que ainda é seu ídolo, mas que encontrou no Papa João Paulo II um significativo concorrente…

A terceira biografia de McGrath não é bem uma biografia: é uma tentativa de aplicar o pensamento de C S Lewis para os dias atuais — algo parecido com uma coleção de sermões baseados em textos lewiseanos. Mas é interessante, porque ilumina o entendimento que McGrath tem do pensamento de Lewis. O título, curioso e chamativo, é If I Had Lunch with C. S. Lewis: Exploring the Ideas of C. S. Lewis on the Meaning of Life (Tyndale, Carol Stream, 2014). Há tradução para o Português, com o título, mais uma vez não fielmente traduzido, Conversando com C. S. Lewis. Para quem nunca leu nada de C S Lewis, esta é uma excelente — e cativante — introdução ao seu pensamento.

B. Duas Obras de Cunho mais Acadêmico

Em quarto lugar, para um tratamento mais acadêmico de Lewis, focado em sua obra mais do que em sua pessoa, há uma livro centrado em suas ideias, editado por Robert MacSwain & Michael Ward, The Cambridge Companion to C. S. Lewis (Cambridge University Press, Cambridge, 2010). Há vinte e um artigos, incluindo uma Introdução por MacSwain. Vale a pena ler, se você está interessado numa análise mais acadêmica das ideias de Lewis. Em geral, o mundo acadêmico na área da Teologia e da Filosofia olha para Lewis com um certo ar de superioridade e desdém… Confira isso lendo esse livro.

Por fim, em quinto lugar, para um tratamento mais focado na teologia de C S Lewis, propriamente dita, recomendo a edição revisada e atualizada do livro C. S. Lewis and the Search for Rational Religion (Prometheus, Amherst, 1985, 2007 [rev. & upd]), de John Beversluis. O livro tem como mote uma importante citação de Lewis que fundamenta o título do livro: “Não peço a ninguém que aceite o Cristianismo se sua razão [‘o seu melhor raciocínio’] lhe diz que o peso da evidência é contrário a ele”. Essa citação explica o título do livro, que defende a tese de que Lewis buscava uma “religião racional”. Essa tese desafia o autor a explicar o que Lewis entende pela graça e pela fé. Desafia também a acomodar a abordagem racional com a abordagem imaginativa, que toca as emoções, que era tão importante para C S Lewis.

4. Duas Biografias de Caráter Sui Generis

Com isso eu chego à discussão do último biógrafo de C S Lewis que me interessa mais de perto, a saber, A N Wilson — um biógrafo que, no início, em especial ao longo do seu primeiro livro sobre Lewis, permaneceu meio desconfiado e bastante distanciado de seu biografado, criticando-o levemente aqui, mais fortemente ali, elogiando-o em outro lugar e, por vezes, até mesmo reconhecendo o seu gênio.

No início de seu segundo livro sobre Lewis, Wilson critica bastante, não tanto Lewis, mas os seus seguidores. Acusando os seguidores mais militantes de Lewis de criarem um “culto” em que o irlandês se tornou basicamente um santo, do qual os eventuais erros, exageros e pecadilhos precisam ser removidos ou escondidos, Wilson divide o “culto” em basicamente dois grupos, que serão mencionados adiante.

Fora do “culto”, que é muito criticado, em suas duas vertentes, Wilson mantém as críticas a certos aspectos da pessoa e do pensador que ele nunca aceitou, mas tem palavras extremamente elogiosas sobre o famoso irlandês. Declara, ainda, que, em muitos aspectos, ele mudou de opinião, em especial em relação à pessoa de Lewis, enquanto pesquisava para escrever o segundo livro e fazer um programa de televisão sobre Lewis para a BBC.

A N Wilson é o que poderíamos chamar de “biógrafo profissional”, embora ele escreva também “biografias de períodos históricos”, se é que é possível usar o termo “biografia” nesse sentido, e também se dedica, talvez nas horas vagas, a escrever ficção. Ele, como Alister McGrath, nasceu em 1953, dez anos antes de Lewis morrer, e já escreveu biografias sobre gente do mais alto coturno. De um lado, Rainha Victoria, Príncipe Albert (marido da Rainha Victoria), Rainha Elizabeth, Hitler, pessoas importantes no mundo político. De outro lado, pessoas importantes no mundo intelectual também foram biografadas por ele: Dante Alighieri, John Milton, Charles Darwin, Lev Tolstoy, John Betjeman, Iris Murdoch. Mas ele escreveu também biografias de Jesus e do Apóstolo Paulo — apesar de ser crítico do Cristianismo — e das religiões, em geral. Em 1991, quando começou a surgir o terror de fundo religioso, com a perseguição do escritor Salman Rushdie pelos muçulmanos, ele escreveu Against Religion: Why We Should Live Without It.

Quanto ao que chamo de “biografia de período”, escreveu vários livros sobre o período Vitoriano (além da biografia da Rainha Vitória e de seu marido, obras sobre os pré-vitorianos, os vitorianos, propriamente dito, os pós-vitorianos, o legado do período vitoriano) e, em 1995, uma obra importante, já mencionada, sobre os céticos, agnósticos e ateus do século 19 (o século da Rainha Victoria), principalmente na Inglaterra: God’s Funeral. Só se concebe um funeral de Deus, se ele está morto, ou se se imagina que ele morreu de vez…

É curioso que uma pessoa que acha que devemos viver sem religião tenha escrito biografias, entre outras, de pessoas que davam (ou, pelo menos, parecem ter dado) enorme importância à religião, como Jesus, Paulo, Dante, Milton, Tolstoy e C S Lewis! E, sobre Lewis, Wilson escreveu dois livros e participou da elaboração de um programa de televisão para a BBC!

Wilson confessa, em seu segundo livro sobre Lewis, que a biografia que anteriormente havia publicado sobre ele, C. S. Lewis: A Biography, de 1990, foi a única biografia que ele escreveu “sob encomenda e pressão”, isto é, porque insistiram que ele a escrevesse (e, provavelmente, pagaram bem). Ele admite que não gostava do biografado (embora reconhecesse alguns dos seus méritos e o seu gênio). No seu segundo livro sobre Lewis, um livro pequeno (72 páginas), na série “Kindle Single”, que tem como título C. S. Lewis: The Man Behind Narnia (Amazon, Seattle, 2013), Wilson faz algumas admissões e confissões importantes. O primeiro capítulo dessa segunda biografia contém algo que parece fora de lugar em um livro que parece prometer uma descrição de como surgiu Narnia, que é indicado no título: “C. S. Lewis and I”. Ou seja: neste primeiro capítulo Wilson inclui uma pequena parte de sua própria autobiografia na biografia de Lewis…

O primeiro livro de A N Wilson sobre Lewis, C. S. Lewis: A Biography (Norton, New York & London, 1990, 2002), faz críticas ao biografado (e aos seus seguidores), mas é um livro bem pesquisado e que levanta algumas questões bastante curiosas, raramente tratadas fora desse livro (e do segundo que escreveu sobre Lewis).

O livro, além de um interessante Prefácio, tem 21 capítulos, dos quais o primeiro trata da pré-vida de Lewis, com o título “Antecedents“, e o último, do pós-vida, com o sugestivo título “Further Up and Further In“. Os dezenove capítulos que tratam da sua vida a quebram em blocos de anos, que abrangem de dois a oito anos (o de maior abrangência cronológica cobrindo os anos 1898-1905, e o de menor abrangência, os anos 1959-1960). As questões mais controvertidas estão no Prefácio e no capítulo 21.

No Prefácio, que tem o título de “The Quest for a Wardrobe“, Wilson conta um pouco da sua busca por aquele que pode ter sido o guarda-roupa que teve papel importante na primeira crônica de Narnia (primeira, cronologicamente falando, porque na versão do livro compilada em um volume ela curiosamente não aparece em primeiro lugar, nem na versão original, nem na versão em Português. Curiosamente, o guarda-roupa aparentemente está em Wheaton, a grande cidadela do Evangelicalismo americano…

No último capítulo do primeiro livro, Wilson discute a questão do “Culto de/a Lewis” (Lewis Cult), em suas duas versões (que é como ele vê esse culto).

O segundo livro de A N Wilson, como já disse, é pequeno. Tem o título de The Man Behind Narnia (Amazon, Kindle Single, s/d). Embora o livro (na edição Kindle, da Amazon) não tenha a sua data de publicação explicitada, por suas primeiras frases depreende-se que ele foi escrito 25 anos depois do livro anterior — vale dizer, em 2015. Quando Wilson publicou o primeiro livro, tinha 37 anos. Ao publicar o segundo, tinha 62. Teve tempo suficiente para amadurecer.

No já mencionado primeiro capítulo desse segundo livro, que é intitulado “C. S. Lewis and I“, ele faz referência a uma “crise de meia idade” que ele, Wilson, teve nesse longo intervalo, e se pergunta se C S Lewis teve alguma coisa que ver com essa crise. Só ele admitir a existência dessa crise e fazer essa pergunta já é algo significativo. Mas ele vai além e é incrivelmente franco e transparente nas coisas que admite e confessa.

Para realçar o significado e a importância dessa crise de meia idade, Wilson conclui a primeira seção do primeiro capítulo desse segundo livro fazendo uma constatação e uma admissão. Faço questão de citar a passagem inteira:

“Quando eu estava escrevendo minha vida de Lewis, eu comecei a pensar que, talvez, sua apresentação da fé pudesse estar certa, se a encarássemos de forma ampla. Mas em vez de me persuadir da verdade do Cristianismo, essa apresentação de Lewis teve o efeito oposto. Lewis, como já disse, apresenta um Cristianismo sem compromissos. Ou você acredita em Deus — ou não acredita. Ou milagres acontecem — ou eles não acontecem. Ou Jesus é o Filho de Deus — ou não é. Ou ele nasceu de uma Virgem, e ressuscitou dentre os mortos — ou não. Os livros de Lewis não deixam nenhuma dúvida de que lado ele está. Mas quanto mais eu lia, mais claro me ficava que eu não estava do lado dele. Seria uma grande injustiça dizer que a leitura de Lewis me converteu ao ateísmo, mas foi enquanto eu lia que eu percebi que ia perdendo a minha fé. Eu não acreditava, pelo menos não do jeito que ele acreditava. Enquanto escrevia o livro, porém, eu fui desenvolvendo uma certa afeição por Lewis, o homem, mesmo reconhecendo que ele era tão diferente de mim quanto era possível ser.”

Mais adiante, ainda no primeiro capítulo da segunda biografia, mas agora na terceira seção, Wilson faz outra afirmação interessante:

“Quando minha biografia foi publicada, eu fui convidado a discuti-la numa igreja famosa de Londres. . . . O vigário ficou em um púlpito e eu em outro. Não sabia, quando subi ao púlpito, que se esperava que eu desse um ‘testemunho’… Mas no curso da discussão, alguma coisa baixou em mim. Quando eu subi para o púlpito, eu ainda acreditava (mais ou menos) no Cristianismo. Quando eu desci do púlpito, eu era um ateu fervoroso. Era a primeira vez que eu era fervoroso em alguma coisa. Na verdade, eu tive algo parecido com uma experiência de conversão evangélica, só que pelo avesso. Enquanto a gente discutia Mero Cristianismo e as falsas certezas e a fantasiosa consolação que ele oferecia, eu fui subitamente possuído de um tipo de ira, ali mesmo no púlpito. [ . . . ] E comecei a gritar que eu não acreditava no Mero Cristianismo, nem em nenhum outro tipo de Cristianismo. Percebi, de súbito, que eu era um ateu, e que tudo aquilo que o livro continha não passava de lixo. Mas, em um sentido, Lewis estava certo: ou você crê ou você não crê. Mas quanto a mim, perguntava-me: como é que pode haver gente que crê? Andar na água? Transformar água em vinho? Anjos?” [Ênfases acrescentadas.]

Diferentemente do que ele fazia com outros biografados, Wilson, ao terminar a primeira biografia de C S Lewis, nunca leu mais nada que Lewis escreveu: fez greve de Lewis, passou 25 anos sem ler nada de sua pena (e, no caso, era literalmente uma pena…). Na verdade, Wilson fugia de Lewis. No fundo, ele culpava Lewis por tê-lo tornado um ateu convertido, um ateu nascido de novo…

Mas, acaso ou providência, ele foi convidado pela BBC para fazer um programa sobre Lewis para a TV britânica.

No processo de fazer esse programa, ele releu vários livros de C S Lewis, conversou com (na sua estimativa) quase todas as pessoas que conheceram Lewis e, em 2015, ainda estavam vivas, visitou vários dos lugares em que foram importantes na vida de Lewis: a casa em que ele morou, que Wilson descreve como tendo dimensões palacianas, cheia dos livros de seu pai, e em que começou a sua trajetória de escritor, escrevendo suas primeiras obras (na coleção que Hooper descreve como “Juvenilia”), as várias casas em que morou com Mrs. Moore, e, finalmente, a casa chamada “The Kilns”, que foi comprada, em sociedade não igualitária, por Mrs. Moore, Lewis e seu irmão Warren, e em que todos esses três moraram até morrer, conforme acordado em contrato. Depois da morte do último deles (Warren), a casa passou para a propriedade da filha de Mrs. Moore.

(Parêntese: Caso você não saiba, Mrs. Moore, ou Janie King Askins Moore, foi uma mulher, mais de 20 anos mais velha do que Lewis, que viveu com ele de 1917 até a morte dela, em 1951, ou seja, durante 34 anos. Quando se conheceram, ela era casada mas separada do marido já há cerca de dez anos. Embora, oficialmente, o relacionamento entre Lewis e Moore tenha sido de “filho adotado” e “mãe substituta”, hoje é aceito por vários autores (que não consideram Lewis um santo, inclusive A N Wilson), que eles viveram juntos como homem e mulher esse tempo todo — ou, pelo menos, até que Lewis se converteu ao Cristianismo. Wilson, em 2015, entrevistou a filha de Mrs. Moore, hoje uma baronesa, que teria admitido para ele que ele estava certo ao presumir que o relacionamento da mãe dela com Lewis havia sido marital e sexual, até mesmo agradecendo a ele por ter finalmente revelado a verdade, com todas as letras, em sua primeira biografia de Lewis, publicada em 1990. Mais detalhes neste artigo: https://www.essentialcslewis.com/2017/06/10/cmcsl-3-lewis-and-mrs-moore-were-secret-lovers/. Entretanto, registre-se que William O’Flaherty, que escreveu e publicou esse artigo, provavelmente não havia lido a admissão da filha de Mrs. Moore, que é transcrita na segunda biografia de Lewis publicada por Wilson em 2015. Fim do parêntese.)

Enfim, em decorrência das novas pesquisas feitas para a elaboração do programa de televisão da BBC, e relatadas em The Man Behind Narnia, é possível concluir que Wilson mudou sua avaliação de Lewis, o homem, concordando com seus admiradores que Lewis, depois de uma infância sofrida, após a morte da mãe, quando ele tinha nove anos, e de juventude meio complicada, tornou-se uma pessoa de excelente caráter, magnânimo e generoso. Quanto à sua avaliação da obra de C S Lewis, Wilson continua a admirar sua obra estritamente acadêmica, como crítico literário e historiador da literatura, continua a detestar a maior parte de sua obra mais teológica, em especial Mere Christianity, mas passou a apreciar bastante livros como A Grief Observed. Quanto a The Chronicles of Narnia, Wilson, depois de reler a coleção, em voz alta, junto das filhas, a pedido delas, que adoravam o livro, passou a achar que há, no livro, trechos geniais, ao lado de passagens que ele continua a detestar. A propósito, A N Wilson voltou para a Igreja Anglicana. Se foi por influência de Lewis, é de duvidar, porque Lewis, embora também anglicano, não defendia as características mais “high church” de sua denominação, e Wilson parece sentir prazer nelas.

Wilson fecha seu segundo livro sobre C S Lewis com esta sóbria conclusão: “Assim, embora a experiência de revisitar Lewis e sua obra tenha inspirado em mim uma admiração pela sua bondade pessoal, creio que eu gosto de sua obra menos ainda do que eu gostava anteriormente”.

Mas, enfim: nada como viver a vida, aprendendo com a vida da gente e a dos outros.

5. O “Culto de/a Lewis” (na Visão de A N Wilson)

A N Wilson não tem dúvida de que existe um “Culto de/a Lewis” — que Lewis está no processo de ser “mitologizado” — e que esse culto tem duas vertentes, que duelam, entre si, não só para abocanhar manuscritos e memorabilia de Lewis, mas para controlar a narrativa acerca dele que é geralmente aceita.

Por volta de 1966, três anos depois da morte de Lewis, os esforços de Walter Hooper controlar o que se sabe e se conhece sobre Lewis ganhou um forte concorrente: Clyde S Kilby, do Wheaton College, de Wheaton, IL, a cidadela do Evangelicalismo americano, que tem um centro para preservar as memórias e relíquias de Billy Graham, criou um centro para fazer o mesmo, não só em relação a C S Lewis, mas em relação a todos os seus amigos de Oxford que formavam o grupo, criado e liderado por Lewis, e que durou mais de 30 anos, com reuniões semanais, chamado “The Inklings“. (Além de C S Lewis, J R R Tolkien, Charles Williams, Owen Barfield, Warren Lewis, e vários outros faziam parte do grupo). Há inúmeros livros sobre The Inklings: Clyde S. Kilby, A Well of Wonder: Essays on C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien, and The Inklings; Philip Zaleski & Carol Zaleski, The Fellowship: The Literary Lives of the Inklings: J.R.R. Tolkien, C. S. Lewis, Owen Barfield, Charles Williams; Humphrey Carpenter, The Inklings: C S Lewis, J R R Tolkien, Charles Williams and their Friends; Colin Duriez, The Oxford Inklings; Harry Lee Poe & James Ray Veneman, The Inklings of Oxford: C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien, and Their Friends; etc.

Kilby conseguiu convencer Warren Lewis, o irmão de C S Lewis, a legar os seus papéis (e ele era o historiador da Família Lewis) para o centro de Wheaton — o que criou um certo ciúme em Walter Hooper, que havia se anglicizado e defendia a tese que os papéis de C S Lewis deveriam ir para a Bodleian Library, de Oxford. Como já dito atrás, Hooper estudou teologia, tornou-se sacerdote anglicano, e, depois de uma audiência com o Papa João Paulo II, que confirmou que gostava muito dos livros de C S Lewis, Hooper se converteu ao catolicismo, passando a ser um padre católico, que continua a ser, apesar de aposentado.

Enfim, as duas vertentes do “Culto de/a Lewis” são:

Essas duas instituições, o Wade Center e a Bodleian Library, se comprometeram a compartilhar os seus recursos através de cópias da melhor qualidade possível, de modo que o ambas pudessem ter uma cópia completa, ou quase, do acervo.

Não haveria problema em haver dois Centros de alta qualidade acumulando documentos e memorabilia de C S Lewis. Pelo contrário: a duplicação é benéfica. O problema é que cada um desses centros está tentando a construir uma narrativa acerca de C S Lewis, e uma imagem dele, aquilo que A N Wilson chama de “uma mitologia”, que não corresponde ao C S Lewis real.

De um lado, em Wheaton, que é um college evangélico-conservador, o fumo, a bebida,  o uso de palavrões, etc., tudo isso é condenado. No entanto, Lewis é uma pessoa que fumava três maços de cigarro por dia, e, nos intervalos, fumava um cachimbo, que bebia cerveja em doses generosas, bem como bebidas bem mais forte, que não hesitava, dependendo do contexto, em usar palavrões e contar piadas de gosto duvidoso, que, se confirmada a história do relacionamento entre ele e Mrs. Moore, teve um relacionamento prolongado com uma mulher casada, que nunca se divorciou, e que, depois, se apaixonou por uma mulher que era separada, antes de seu divórcio se concretizar, vindo a se casar com ela quando o divórcio foi finalizado. Isso tudo, apesar de ter afirmado, em Mere Christianity, que o Cristianismo só admite relações sexuais dentro do casamento, com fidelidade completa ao cônjuge, ou, então, total abstinência, e que o Cristianismo não admite o divórcio, com a consequência de que um casamento de um solteiro com uma pessoa divorciada, ou um segundo casamento de uma pessoa divorciada, se consumado, implica em adultério (vide a esse respeito meu artigo “O Cristianismo Tem uma Visão Única do Casamento? A Propósito das Ideias e da Vida de C S Lewis”, em meu blog C S Lewis Space, em https://cslewis.space/2020/07/02/o-cristianismo-tem-uma-visao-unica-do-casamento-a-proposito-das-ideias-e-da-vida-de-c-s-lewis/). Diante desses fatos, essas características inegáveis da vida de Lewis (fumar, beber, linguagem de mau gosto, etc.) têm de ser, se não ignoradas, desenfatizadas e abrandadas na narrativa evangélica, para que Lewis, que inegavelmente é um ícone do evangelicalismo americano, possa parecer menos incoerente com o ideário evangélico.

De outro lado, o grupo que reconhece o inegável papel de Hooper na preservação da memória e das ideias de C S Lewis, têm que conviver com um processo de quase beatificação de Lewis. Nesse processo, Hooper não só tem negado que Lewis viveu maritalmente com Mrs. Moore, o que muita gente nega, mas tem sugerido que ele chegou virgem ao seu casamento com Joy Davidman, e, que, depois de casado com ela, não consumou o casamento, tendo vivido até a morte em virgindade perpétua… Acontece, que para poder, se não afirmar, mesmo sugerir isso, Hooper afronta evidência manifesta ao contrário deixada, por escrito, não só por Joy Davidman Lewis, mas pelo próprio C S Lewis.

Como diz A N Wilson, nem o Lewis dos Evangélicos, nem o Lewis dos Católicos, corresponde ao Lewis real, ao Lewis histórico, por assim dizer, que foi uma pessoa de caráter bom e generoso — mas que não foi, em sua vida, nem o evangélico ideal nem o santo que estão tentando fazer dele. Isso em relação à sua pessoa. Em relação às suas ideias, elas não conflitam com os ideários evangélico e católico — embora bem menos no primeiro caso do que no segundo.

Para fechar este capítulo do que será um trabalho maior, cito algumas passagens da primeira biografia de Wilson:

“As disputas entre estudiosos e guardiães da memória de C. S. Lewis não são edificantes, mas elas refletem muito mais do que um debate acadêmico ou um desejo mercenário de ter mais manuscritos valiosos. Na verdade, a despeito do que alguns cínicos afirmam, parece não haver avareza nesses embates. O que emerge é uma profunda divergência de visões imaginativas de mitologias rivais. Aqueles que têm podido testemunhar o espetáculo têm sido capazes de observar, em microcosmo, algo que talvez seja sintomático do pensamento religioso como um todo: a necessidade de construir imagens e adorá-las. O Marion E. Wade Center do Wheaton College mantém viva a imagem de um Lewis evangélico, simples em sua devoção a um ‘mero Cristianismo’, e preocupado com questões teológicas, quase de forma exclusiva, sem quase nenhum outro interesse. Não é uma imagem totalmente falsa. O próprio Lewis ajudou a construir essa ‘persona‘, tanto nos escritos religiosos que ele publicou como nas cartas que ele enviou às pessoas que, aos milhares, lhe escreviam pedindo ajuda para sua busca religiosa. [ . . . ] Mas há algo que chega perto de uma farsa quando se constata a discrepância que existe entre o que se propõe e a realidade. O mesmo sentimento de choque surge quando se participa de uma reunião da C. S. Lewis Society de Oxford, com a presença da Walter Hooper, onde um C. S. Lewis celibatário e defensor da ‘High Church’ é reverenciado. A evidência é apenas de interesse periférico quando a imaginação idólatra está em ação. [ . . . ] Como disse um outro dos autores do panteão de Wheaton, ‘A espécie humano não pode suportar uma dose muito grande de realidade’. [ . . . ] C. S. Lewis se tornou uma figura mitológica, e, portanto, parece legítimo para algumas pessoas recontar sua história sem levar muito em conta a evidência empírica, da mesma forma que os poetas contaram e recontaram as histórias da mitologia grega ou nórdica”.

É legítimo perguntar: ou da mesma forma que os evangelistas contaram a história de Jesus?

Fico por aqui nesta resenha de biografias…

Em Salto, 4 de Julho de 2020



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