A Felicidade

Motes (para refletir, antes de começar a leitura do artigo):

It’s not what happens to you,
but how you react to it that matters.
(Não é o que acontece com você que importa,
mas como você reage ao que lhe acontece.)
(Epictetus / Epíteto)

I am not what happened to me.
I am what I choose to become.
(Não sou fruto do que aconteceu comigo.
Eu sou o que escolho me tornar.)
(Carl Jung)

Life isn’t about finding yourself.
Life is about creating yourself.
(Sua vida não é algo que você descobre.
Ela é algo que você próprio cria.)
(George Bernard Shaw)

o  O  o

Há assuntos escorregadios e perigosos sobre os quais a gente só se arrisca a escrever depois que nossa idade passa dos 75 anos – três quartos de século… Alguém já disse que depois dos 75 anos a gente pode dizer o que quiser e se safar, na pior das hipóteses, com a acusação, pelos desafetos (e nessa idade a gente já colecionou muitos), de que está senil – gagá, como se diz no dia a dia. Completei 79 anos este ano, entrando no meu octogésimo ano – e resolvi me arriscar (mesmo antes de completar 80), enfrentando um desses assuntos complicados, espinhosos mesmo, mas que me é muito caro, já há muito tempo, como ficará claro no texto: a felicidade.

Esclareço que, por alguns dias, este artigo esteve publicado neste blog com um título mais descritivo: “A Felicidade: Dez Teses Cautelosas”.

A. Introdução

Meu querido amigo dos tempos do Ensino Médio, em colégio interno, Waldemar Marques (o Dema, como o chamávamos no Instituto JMC [1]), costumava cantar, na Noite de Talentos do Acampamento Palavra da Vida, uma canção de que nunca me esqueci, embora nunca mais a tenha ouvido desde os idos de 1964, quase 60 anos atrás: Canção da Felicidade, de Vicente Celestino. Diz a sua letra [2]:

“Felicidade para que me vieste?
Se após partiste, não mais voltaste.
A minha vida tornou-se agreste,
Pois a saudade tu me deixaste!

Felicidade, tu não conheces
A dor, que mata, de uma saudade…
Felicidade, nunca me viesses!
Porque te foste, felicidade?

Fiquei sozinho, pois meu amor,
Quando partiste, partiu também.
Fiquei sozinho, com minha dor,
Que nunca foge para ninguém.

O meu martírio não tem mais fim,
Quando me lembro que te aspirei,
E que brilhaste no meu jardim,
Como a coroa de luz de um rei!

Eu te quis tanto, porque julgava
Que, se chegasses, não mais te irias,
Que sempre fosses a minha escrava,
Que te alongasses pelos meus dias!

Felicidade, tu não conheces
A dor, que mata, de uma saudade…
Felicidade, nunca me viesses!
Porque te foste, felicidade?

É uma letra requintada, caprichadíssima, mas triste, e, por isso, talvez um pouco inadequada para iniciar um artigo sobre a felicidade. Ou, quem sabe, não? A letra triste sublinha um fato de todos conhecido acerca da felicidade: ela não é algo fácil de alcançar, e, mesmo quando a alcançamos, corremos sempre o risco de perdê-la. Por isso, apesar de a maioria das pessoas desejar ser feliz, poucas realmente o são. Ou, então, mesmo que alguns alcancem a felicidade, poucos são os que conseguem mantê-la pelo resto da vida (ou, pelo menos, por muito tempo). A felicidade é algo difícil de sustentar. E, como na canção, quando ela vem, e depois vai embora, o vazio que ela deixa é maior do que o vazio que a gente sentia antes de ela vir, a ponto de o poeta dizer, ah, felicidade, nunca me tivesses vindo, para que eu não me considerasse tão mais infeliz agora!

Algumas pessoas imaginam, em determinado momento da vida, que são felizes, e talvez até o sejam, mesmo, mas a felicidade que acreditam ter, ou de fato tenham, é razoavelmente rasa, pobrinha mesmo, quando cotejada com a felicidade de outros, que é ampla, profunda, rica (ou assim aparece). Essas pessoas descobrem, mais tarde, às vezes muitos anos depois, às vezes só no final da vida, que, de fato, não eram felizes, não felizes “comme il faut“, como é preciso ou desejável que sejamos – em geral porque vieram a contemplar, ou mesmo a viver, mais tarde, pelo menos por algum tempo, uma vida que era muito mais florescente (flourishing), realizada (fulfilled), ampla e plena (full, complete), profunda (deep), enriquecida (enriched) do que aquela que antes viviam – do que aquilo que viveram e que, na ocasião, imaginaram ser felicidade verdadeira.

Por outro lado, há pessoas que são felizes, pelo menos em determinado tempo de sua vida, sem se darem conta do fato, como narra Ataulfo Alves em sua canção autobiográfica, Meus Tempos de Criança… Como citei a letra inteira da canção de Celestino, faço o mesmo com a de Alves [3] (a de Dorival Caymmi, que vou mencionar adiante, não vale a pena transcrever por inteiro):

Eu daria tudo que eu tivesse
pra voltar aos dias de criança…
Eu não sei pra que que a gente cresce,
se não sai da gente essa lembrança!

Aos domingos, missa na matriz,
da cidadezinha onde eu nasci…
Ai, meu Deus, eu era tão feliz,
no meu pequenino Miraí!

Que saudade da professorinha,
que me ensinou o beabá…
Onde andará Mariazinha,
meu primeiro amor, onde andará?

Eu igual a toda meninada,
quanta travessura que eu fazia…
Jogo de botões sobre a calçada,
eu era feliz e não sabia!

Ainda outras pessoas não parecem ser felizes na infância: só encontram a verdadeira felicidade quando o fim da vida já aparece no horizonte – e o tempo para desfrutá-la é escasso. Por causa disso, elas ficam com aquele gostinho meio amargo na boca, e perguntam a si mesmos por que a felicidade demorou tanto a chegar… Mas, mesmo assim, são gratos por tê-la encontrado e vivenciado pelo menos pelo tempo que foi possível desfrutá-la! Três meses que sejam de real felicidade muitas vezes compensam uma vida inteira, se não totalmente infeliz, pelo menos em que faltava algo. Como diz o Coronel Frank Slade, inesquecível personagem de Al Pacino, em Scent of a Woman (Perfume de Mulher), “some people live a lifetime in a minute!” (há pessoas que vivem uma vida inteira em um só minuto!).

Outras pessoas professam não saber no que consiste a felicidade. São mais pobres do que aquelas pessoas que têm uma felicidade pobrinha. São mais infelizes do que as pessoas que são infelizes, mas sabem muito bem o que as tornaria felizes. Tenho pena das pessoas que afirmam não saber no que consiste a felicidade. Alegam, os que assim protestam, que o conceito é (ou, pelo menos, assim lhes parece) abstrato, vago, impreciso, não lhes fornecendo uma diretriz clara e precisa sobre onde procurá-la e como reconhecê-la, se a encontrarem.

Outras pessoas, mais dogmáticas, daquelas que acham que sabem tudo, chegam a negar que a felicidade exista. São pessimistas, por natureza ou pela experiência. Em geral também são casmurros e ranzinzas. Acham que aquilo que outras pessoas sentem, as que se dizem felizes, é apenas a aparência de felicidade, “not the real thing…”. São os kantianos da felicidade. Kant disse que só temos acesso às aparências das coisas, aos phenomena, não às coisas em si mesmas, aos noumena. Kant estava errado na epistemologia. E seus seguidores, na ética, que discorrem sobre a felicidade dessa forma, também estão. . .

E ainda há outras pessoas, por fim, que afirmam que a felicidade é algo relativo, que varia com o local, com o tempo, com a geografia e com a história, ou mesmo com cada pessoa, individualmente. Segundo elas, tudo (ou seja, qualquer coisa) pode representar a felicidade. “Happiness is different things to different people, that’s what happiness is”, dizia a canção famosa, interpretada pela Orquestra e Coro de Ray Coniff, nos anos de minha juventude [4]. O que é felicidade para um, não o é para outro. Nesse relativismo, todo mundo é feliz, de algum modo, em algum momento, por algum tempo. “Felicidade é uma calça velha, azul e desbotada”, dizia o anúncio, valendo-se da permissividade criada por esse relativismo. Pode ser que aquilo que torna uma pessoa feliz, não faz a outra, necessariamente, também feliz. Mas isto não é relativismo, se o significado ou o sentido do conceito de felicidade for o mesmo para as duas. É apenas parte das chamadas diferenças individuais que individualizam o ser humano.

No entanto, apesar dessas discordâncias e dificuldades, estou convicto de que, com alguma cautela, é possível enunciar algumas teses defensáveis sobre a felicidade – isto é, fazer algumas afirmações sobre a felicidade que parecem bastante razoáveis diante da melhor evidência disponível. E isso, mesmo sem antes enunciar uma definição formal do que seja felicidade, partindo apenas daquilo que cada um, intuitivamente, entende do assunto, tendo aprendido, não no estudo acadêmico do tema, mas no mister de viver a sua vida, tentando, o melhor que pode, ser feliz – ainda que um pouquinho só, mas por muito tempo, ou ainda que por um tempo curtinho, desde que seja muito feliz (com uma felicidade parecida com aquela que sentiu a parceira do Coronel Slade enquanto com ele dançava o tango Por una Cabeza, em Perfume de Mulher.

B. Dez Teses sobre a Felicidade

A primeira tese é que toda pessoa mentalmente sadia deseja ser feliz. Talvez seja meio arriscado sugerir que quem não deseja ser feliz, talvez o masoquista, que gosta de se sentir péssimo, não passa de um doente mental. Mas alguém (Dorival Caymmi) já se safou dizendo que “quem não gosta de samba bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça ou doente do pé” [5], e, por isso, me arrisco a enunciar essa primeira tese e estou pronto para defendê-la, se e quando necessário. Mas não acho que seja preciso fazê-lo aqui e agora, hic et nunc.

A segunda tese é quase um corolário desta primeira – ou, talvez, seja esta a tese básica da qual a primeira não passa de um corolário. Não é preciso decidir isso. É esta a segunda tese: o desejo de ser feliz é parte constituinte da natureza humana: o ser humano existe para ser feliz. Se eu estivesse escrevendo como cristão, que sou (talvez porque fui, como dizia o Rubem Alves [6]), eu diria que nós fomos criados para ser felizes, para fruir e gozar a vida, desfrutando as coisas boas que existem neste fantástico universo em que nos é dado viver. Fomos criados para viver num paraíso. Se alguma coisa torna isso difícil, pouco provável, ou mesmo, para alguns, aparentemente impossível, ela é acidente de percurso, que não invalida a tese de que existimos, ou fomos criados, para ser felizes [7].

A terceira tese é que, embora desejar ser feliz seja uma condição natural do ser humano, ser feliz não é algo que aconteça automaticamente, apenas vivendo, sem pensar no assunto, sem “mindfulness”, como dizem alguns. Para ser feliz, não basta apenas desejar ser feliz – embora sem querer ser feliz dificilmente se consegue ser feliz. A felicidade nunca é enfiada em nós, garganta abaixo, contra a nossa vontade ou mesmo independente de nossa vontade, como se fosse algo parecido com crescer e envelhecer. E a gente, mesmo desejando ser feliz, em regra não topa ou tromba com a felicidade, sem a estar procurando e sem estar preparado para reconhecê-la numa forma talvez um pouco diferente daquela que imaginávamos. A felicidade por sorte ou por acaso parece não existir. A felicidade é algo que, além de desejar, é preciso procurar, buscar e perseguir, até encontrar – e, tendo a encontrado, é preciso conquistá-la, mantê-la, preservá-la, cultivá-la, aperfeiçoá-la, aprimorá-la. “Il faut cultiver notre jardin”, disse em Candide [8]: é preciso que cada um cultive o seu jardim. Caso contrário, cresce mato, ou a terra fica seca, acabamos por perder o jardim – da mesma forma que, na canção de Celestino, a felicidade partiu e não mais voltou. E mesmo fazendo tudo que parece necessário e certo, às vezes a perdemos, por causas ou razões que independem totalmente de nós. Não temos controle sobre tudo que nos acontece… Mas temos controle sobre como reagir ao que acontece conosco.

A Declaração de Independência dos Estados Unidos, escrita por Thomas Jefferson, afirma que, por sermos humanos, temos três direitos naturais inalienáveis: o direito à vida, o direito à liberdade, e o direito… não à felicidade, em si, mas, sim, à busca da felicidade. A vida nos é dada sem que sejamos consultados, sem que façamos algo para merecê-la. A liberdade é algo que naturalmente desejamos, mas que precisamos lutar para conquistar, preservar e ampliar (o seu preço, como no caso da liberdade, também é a eterna vigilância, segundo disse o mesmo Thomas Jefferson). Mas a felicidade, esta precisa, além de ser desejada, ser procurada, ser buscada, ser perseguida, e, uma vez encontrada, ainda ser conquistada, mantida, preservada, cultivada, aperfeiçoada, e aprimorada. Tudo isso. É por isso que ela é preciosa: quem a tem, não quer perdê-la.

A quarta tese, ligada à anterior, é que, embora a vida nos seja dada sem que façamos por merecê-la, o caso da felicidade é diferente. Além de desejada e procurada, é preciso que façamos algo para merecê-la (para ganhá-la ou para mantê-la), que vivamos de forma a fazer jus a ela… Essa tese já sugere (de leve) que há uma conexão importante entre felicidade e virtude, entre a busca da felicidade e a busca da vida virtuosa, o tipo de vida que, da perspectiva moral, vale a pena viver (is worth living).

A quinta tese é meio complicada e para alguns soa implausível (talvez por que não tenhamos ainda discutido o conceito ou a definição de felicidade). A melhor estratégia para a busca da felicidade está na busca, não dela em si, mas da busca e da construção do sentido e do significado da vida, da construção de uma vida que, como dito no item anterior, realmente valha a pena viver. A felicidade é consequência. “La felicidad no es tanto un destino: es más una forma de caminar”, diz um quadrinho (mais um banner do que um quadrinho) que eu tenho.

A sexta tese que parece ser possível afirmar sobre a felicidade, e que parece ficar em certa tensão paradoxal com o que acabou de ser dito, é que ela é um estado relativamente duradouro, não intermitente – embora não haja garantia de que seja permanente. Não se está hoje feliz, amanhã, infeliz. Não se está feliz de manhã, à tarde, infeliz. A menos que um desastre aconteça entre ontem e hoje, entre a manhã e a tarde do dia, como a morte de um dos pais, ou filhos, ou do grande amor da vida da gente. Sem algo assim, a felicidade é duradoura e não se confunde com a alegria e o contentamento, que podem ser fugazes e voláteis, que podem estar aqui um dia e ir embora no dia seguinte, que podem estar conosco de manhã e ter acabado à tarde. A felicidade é mais resistente, resiliente, duradoura (mesmo não sendo necessariamente permanente). É verdade que mesmo os mais felizes têm momentos de tristeza e descontentamento. É perfeitamente possível ser feliz e estar triste: a felicidade perdura até mesmo através da tristeza. A gente usar o verbo “ser” para indicar a posse da felicidade e o verbo “estar” para indicar a posse da alegria. Ser uma pessoa triste, tipo o tempo todo, já é algo próximo do patológico, que requer atenção. E, como já dito, mais de uma vez, a felicidade pode terminar, pode ir embora, pode ser arrancada de nós (como bem indica a canção de Celestino).

Uma sétima tese que parece ser lícito afirmar é que a felicidade não é algo que se alcança baixando nossas expectativas, reduzindo nossos desejos em quantidade, intensidade e qualidade, para que tenhamos menos risco de nos frustrar… Ao longo da história do Cristianismo já houve quem defendesse a tese, que considero absurda, de que a única felicidade permissível ao cristão é a felicidade decorrente da ausência total de desejos. Não havendo nenhum desejo, não haverá, naturalmente, nenhuma frustração de desejo, e a felicidade verdadeira seria exatamente essa [9]: não ter desejo, não pecar, porque a gente não é tentável, e não ser tentável porque a gente não tem nenhum desejo. Para mim, isso não faz o menor sentido. Na minha forma de ver o mundo e entender as coisas, a felicidade verdadeira é aquela que decorre daquilo que é o melhor dentro de nós – ela se origina daquilo que é “the best within us…” e se realiza quando somos capazes de construir uma vida que represente, de forma concreta, este melhor que temos dentro de nós [10]. E este melhor que temos dentro de nós não pode ser um buraco, um vazio de desejo.

Uma oitava tese acerca da felicidade que, a luz do precedente, parece evidente, é que, mesmo que o desejo da felicidade seja algo parecido com inato, a felicidade, em si, não é algo inato, alguma misteriosa combinação de genes com a qual alguns nascem e outros, não. Ninguém nasce com o dom de ser feliz – ou com a sina de ser infeliz. Qualquer um pode ser feliz, mesmo sem ter nascido em berço esplêndido, mesmo sem ter sido dotado, ao nascer, de uma aparência física bela ou de uma notável inteligência, e mesmo sem ter os ingredientes básicos de uma personalidade charmante e, por isso, atraente.

Quase por fim, uma nona tese, que é a seguinte. Se, como já ressaltado, a felicidade não é algo com o qual se topa ou tromba sem querer, por acaso, e, se, como visto na tese anterior, ela não é algo inato a um indivíduo, a felicidade, no sentido que aqui se está procurando dar ao conceito, é algo que é preciso aprender. Para encontrá-la e ser capaz de desfrutá-la é preciso um certo preparo – caso contrário, ela passa por você e você nem percebe que ela esteve por perto… Ser feliz é parte de um projeto de vida que é elemento essencial de nossa educação… A dificuldade está nessas duas perguntinhas simples: Como? Onde? Como é que se aprende a ser feliz? Será buscando o prazer? Se não for através da busca do prazer, será pela busca do que, então? E onde se aprende a ser feliz? Será em casa? Na igreja? Será na escola, na vida da escola? Ou será na vida, vivendo, naquilo que podemos chamar de escola da vida? [11]

Por fim, a décima tese. Contrariando em parte o mestre C. S. Lewis, do qual sempre hesito discordar, não acredito que, no Cristianismo, o nosso sofrimento, a nossa dor, faça necessariamente parte do plano divino para que cheguemos à verdadeira felicidade. O Deus cristão, sendo onisciente, onipotente, e onibenevolente, encontraria forma menos sádica de nos fazer felizes, mesmo eternamente felizes, do que nos fazer sofrer ao longo desta vida terrena. Reconheço que algum sofrimento é inevitável neste mundo, dado que nossa vida é finita, nosso organismo dura apenas um certo tempo, e, por isso, não só nós sofremos acidentes, ficamos doentes e oportunamente morremos, como vemos nossos entes queridos também sofrer e, num dado momento, deixar esta vida. Isto é um fato, mas não pode – ou não deve – ser erigido como algo deliberada e intencionalmente escolhido por Deus para nos fazer sofrer, porque apenas o sofrimento aperfeiçoaria o nosso caráter e nos poria no caminho da virtude. Isso me parece uma heresia lewisiana – embora compartilhada por muitos. Vários teólogos chegam a designar a nossa vida neste mundo de “Um Vale de Lágrimas” [12]. Diz o ator que o interpreta (o sempre quase impecável Anthony Hopkins) no filme Shadowlands (sigo o script):

“Deus deseja que soframos? E se a resposta a essa pergunta for SIM? Vejamos… Eu não estou certo de que Deus, particularmente, queira que sejamos felizes. Creio que ele quer que sejamos capazes de amar e de ser amados. E ele quer que nós cresçamos. Gostaria de sugerir-lhes que é porque Deus nos ama que ele nos dá a dádiva do sofrimento. Colocando a coisa de outra forma, a dor é o megafone de Deus para fazer com que um mundo surdo acorde.” [13]

“Vejam vocês, nós somos como blocos de pedra, a partir dos quais o escultor consegue esculpir as formas de um ser humano. Os golpes do cinzel divino, que nos causam tanto dor e sofrimento, também nos tornam perfeitamente humanos. Duas vezes na minha vida eu tive a escolha, a primeira como menino [quando da morte da mãe], a segunda como homem [quando da morte da mulher]. O menino escolheu segurança [e se tornou ateu]; o homem escolheu sofrimento [e se manteve fiel em sua crença em Deus]. A dor, agora, faz parte da felicidade que virá, depois. É esse o trato.” [14].

Acho muito difícil de aceitar essa tese. Impossível mesmo. Algum sofrimento é inevitável, e ele faz parte das “urzes da jornada” que é mister enfrentar e vencer, como dizia Mário Pederneiras no soneto Suave Caminho. Enfrentado estoicamente, talvez, porque não temos total controle sobre o que nos acontece. Mas não acredito que seja o caso de que o sofrimento seja a coisa mais importante da vida porque, sem ele, não seremos verdadeiramente felizes um dia, no futuro. Não consigo aceitar que exista um trato desse tipo. Estou convicto de que fomos criados para ser felizes. O sofrimento pode temporariamente obscurecer a felicidade, pode tornar mais difícil manter-se nela, e ele é parte da realidade da vida, mas acho impossível que Deus torne o sofrimento uma condição necessária, sine qua non, da nossa felicidade – nesta vida ou numa eventual vida futura.

C. Dois Grandes Desafios

Quero sugerir neste artigo que todos podem, em princípio, alcançar a felicidade, se forem capazes de vencer dois grandes desafios: o primeiro, o desafio no plano dos fins; o segundo, o desafio no plano dos meios.

O desafio no plano dos fins é o seguinte: é necessário que cada pessoa defina, com razoável clareza e precisão, mesmo que não com total finalidade, o que ela quer fazer de sua vida, aonde ela quer chegar, qual é o destino a que, tendo chegado lá, ela pode dizer como São Paulo: “Combati o bom combate, acabei a carreira” (2o Timóteo 4:7-8) – cheguei aonde queria chegar, cumpri a missão que me impus, sou uma pessoa realizada, plena, completa, feliz… Destino que lhe permita dizer, como Pablo Neruda disse, no título de sua interessante autobiografia, Confieso que He Vivido [15]. Ou como o belíssimo canto bíblico de Simeão, Nunc Dimittis [16], e tantos outros…

O desafio no plano dos fins é, portanto, uma questão de definição de projeto de vida. Se a pessoa não sabe aonde quer chegar, ela nunca vai chegar lá, vai apenas andar a esmo, porque qualquer destino serve, qualquer caminho também serve, porque um caminho, afinal de contas, sempre leva a algum lugar — mas, neste caso, não a um lugar que se escolheu, porque nenhum foi escolhido.

O desafio no plano dos meios é o seguinte: é necessário reconhecer que, definidos os fins, os meios de chegar lá também passam a ser extremamente importantes. Não é qualquer caminho que serve. Na busca de fins ou objetivos, não é lícito, por exemplo, atropelar os outros. Nem é passando por cima deles, roubando, assaltando, matando, que vamos alcançar a felicidade. O desafio no plano dos meios é, portanto, uma questão de como é que a pessoa vai perseguir o seu projeto de vida: como é que ela vai chegar aonde deseja chegar, aonde ela precisa chegar para ser feliz. Embora possa haver mais de um caminho para chegar lá, um mais rápido, em estrada asfaltada, de várias pistas, mas com diversos pedágios, e possivelmente, sem uma vista muito atraente, o outro mais demorado, em estradas que serpenteiam dentro de florestas e beirando rios, um caminho mais cênico e pitoresco, e, por cima, sem pedágio, mas mais estreito, e por isso, mais demorado (e, talvez, perigoso)… Essa história é meio parecida com a história bíblica dos dois caminhos (que até produziu um quadro antigo que quase toda casa de crente tinha…). A verdade a absorver é que nem todo caminho leva à realização do projeto de vida de uma pessoa: ela provavelmente terá de abrir mão de alguns deles, por mais atraentes e sedutores que possam parecer. É importante, além de ter certeza de que o caminho leva aonde se quer chegar, que o caminhar também seja prazeroso. Foco em valores é uma coisa importante. Dentre os caminhos que levam à realização do projeto de vida de uma pessoa, alguns podem envolver violação ou comprometimento dos valores dela – impedindo que ela chegue ao seu destino com a certeza de que respeitou plenamente às virtudes envolvidas em seus princípios morais e manteve íntegro o seu caráter.

Cito de novo o meu quadrinho “La felicidad no es tanto un destino: es más una forma de caminar…” Parece verdadeiro, mas não o é, pelo menos não totalmente. Primeiro, porque a felicidade é um destino, ou, pelo menos, o nome que se dá ao destino que se quer alcançar. (Isso é admitido no dito do quadrinho pelo uso dos termos “tanto” e “más”. Segundo, porque a felicidade é ou resume um destino ao qual se chega apenas quando se caminha de uma certa forma. O título que será dado ao livro do qual este artigo fará parte sugere qual é a forma de chegar à meta da felicidade: com sabedoria, coragem e serenidade…

Notas

[1] Waldemar Marques, o Dema morava (creio que ainda more) em Osasco, e era um barítono de primeira (creio que ainda seja). Não o revejo há décadas, mas sempre soube por onde anda, porque sou amigo de seu filho no Facebook. Ele, o Dema, não é chegado a gastar tempo nas Redes Sociais.

[2] Retirei a letra do site Letras [de Músicas Brasileiras], no endereço https://www.letras.mus.br/vicente-celestino-musicas/cancao-da-felicidade/.

[3] Vide a letra no site Letras, no endereço https://www.letras.mus.br/ataulfo-alves/84080/.

[4] Vide a letra no site Genius, no endereço https://genius.com/Ray-conniff-happiness-is-lyrics.

[5] Em Samba de Minha Terra, vide a letra completa também no site Letras, no endereço https://www.letras.mus.br/dorival-caymmi/45588/.

[6] Rubem Alves falou em ser protestante, não em ser cristão. Faz uma certa diferença. Vide seu magnífico artigo “‘Confissões de um Protestante Obstinado’: Depoimento de Rubem Alves”, hoje em meu blog Liberal Space, no seguinte endereço: https://liberal.space/2015/10/07/confissoes-de-um-protestante-obstinado-depoimento-de-rubem-alves/. Esse artigo foi originalmente publicado na revista Tempo e Presença, Publicação Mensal do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), número 169, de Julho de 1981. A publicação do artigo fez 41 anos neste ano de 2022. [Tenho um exemplar da revista de 1981. É uma relíquia.]

[7] Aristóteles, o grande filósofo grego, discípulo de primeira geração de Platão (que, como bom discípulo, não aceitou tudo que Platão disse), e discípulo de segunda geração de Sócrates, defendeu essa tese (não, naturalmente, na sua versão em que se fala de criação, pois ele não acreditava na criação do mundo, defendendo a tese da eternidade do universo). Considero-me, portanto, em excelente companhia ao defender esta tese.

[8] Voltaire, Candide, ou l’Optimisme (1759, ch.30, Conclusion). A frase é colocada na boca de Candide (Cândido), o personagem otimista, que acreditava este, o nosso, é o melhor de todos os mundos possíveis. Gente de peso na filosofia, como Leibniz, defendeu tese semelhante.

[9] Quem estiver interessado neste assunto pode consultar o meu artigo “Justiça Social, Igualitarismo e Inveja: A Propósito do Livro de Gonzalo Fernández de la Mora”, Parte I e Parte II, publicado no meu blog Liberal Space, em https://liberal.space/2007/12/08/justica-social-igualitarismo-e-inveja-parte-1/ e https://liberal.space/2007/12/08/justica-social-igualitarismo-e-inveja-parte-2/, em especial a seção I, “Desejo e Felicidade”, na Parte I. Esse artigo foi originalmente publicado, em um bloco só (sem a separação em duas partes), mas em versão reduzida (vide a explicação a seguir), em Pro-Posições, revista oficial da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), nº 4, Março de 1991, pp.26-40. Posteriormente ele foi incluído, agora na íntegra, com o texto original, complementado com algumas passagens adicionais, em meu livro Cinco Artigos em Defesa do Liberalismo Clássico: Uma Coletânea (Mindware Education Editora, São Paulo, 2018). Nesse livro, eu inseri uma nota (a de número 34, explicando os “vais-e-vens” do artigo), que diz o seguinte: “O título original deste artigo era: “Justiça, Igualitarismo e Inveja: A Propósito do Livro de Gonzalo Fernández de la Mora”. O livro em questão era Egalitarian Envy: The Political Foundations of Social Justice [ . . . ] .O artigo foi inicialmente publicado, em versão mais curta, na revista Pro-Posições. [ . . . ] O artigo só foi publicado depois de o autor ter concordado em eliminar dele várias referências explícitas à Universidade, que os leitores do trabalho [ . . . ] do Comitê Editorial da revista, todos eles professores da Faculdade de Educação, acharam inapropriadas. A justificativa dada pelo Comitê Editorial foi que, embora nada do que estava dito fosse falso, não ficava bem numa revista oficial da Faculdade de Educação que aparecessem críticas explícitas à Universidade. Concordei (como uma vez disse David Hume) em ‘castrar’ o artigo para poder publicá-lo ali. Nesta versão as partes cortadas foram reintroduzidas. Esta versão também contém bem mais material do que a original, especialmente nas notas de rodapé.”

[10] Vide, neste contexto, o excelente livro The Best Within Us: Positive Psychology Perspectives on Eudaimonia, editado por Alan S. Waterman (American Psychological Association, Washington, DC, 2013). Nesse livro, eudaimonia (variante de eudaemonia) é definida como “flourishing, realization of potentials reflecting the true self, happiness that comes from the pursuit of virtue and excellence” (florescimento, realização de potenciais que refletem o verdadeiro ser da pessoa, e felicidade que advém da busca da virtude e da excelência). Esse resumo é retirado da breve resenha do livro que é fornecida no site da Amazon, sob responsabilidade do site (https://www.amazon.com/Best-Within-Psychology-Perspectives-Eudaimonia/dp/1433812614/). [Quando não estou citando autores que escreveram Inglês, em geral uso a grafia eudaemonia, que também é usada por muitos autores em Inglês.]

[11] Para que o leitor fique sabendo que essa é uma preocupação minha que já tem cerca de 60 anos, no meu discurso de formatura, no Curso Clássico (hoje equivalente a um Ensino Médio na área de Humanidades), no Instituto José Manuel da Conceição (JMC), de Jandira, SP, já mencionado, no ano de 1963, citei uma quadrinha de um poeta de Americana, SP, contida num livrinho chamado Uma Vida que Nasce…, que diz o seguinte: “Sapiência não se esmola, tem de ser adquirida, na acre vida da escola, ou na doce escola da vida.” Vide o discurso de formatura (na verdade, mais sermão do que discurso…) no meu blog Instituto JMC, no endereço https://jmc.org.br/2010/03/07/meu-discurso-de-formatura-no-jmc-em-1963/. A cerimônia de formatura se deu no dia 30.11.1963, a partir das 20h. Naquele ano eu havia completado vinte anos. Bem tarde para estar terminado o Ensino Médio. A explicação está no fato de que entrei no Curso Primário com quase nove anos, e fiquei um ano trabalhando, sem estudar, depois de concluído o Ginásio (hoje Fundamental II), em 1959. Esse ano sem estudos foi o de 1960. Vide o convite de formatura no mesmo blog, no endereço https://jmc.org.br/2019/09/23/convite-de-formatura-do-ano-de-1963/. O paraninfo da turma foi o Deputado Estadual paulista Dr. Camillo Ashcar, que era protestante (evangélico). Uma outra evidência de meu continuado interesse no assunto, o quarto livro que comprei no formato ebook, padrão Amazon Kindle, foi Happiness and Education, de Nel Noddings, comprado em 20.3.2010, no que a Amazon chama de “Kindle Store”. Paguei US$ 16.99, um preço caro para um ebook. Ele só foi precedido por dois livros de Ayn Rand e um sobre Ayn Rand comprados em 12.3.2010.

[12] Vários autores mencionam o tema do “Vale de Lágrimas”. John Hick, em Evil and the God of Love [O Mal e o Deus do Amor], inova e fala em “Vale de Cultivo da Alma” (Vale of Soul Making), especialmente no capítulo 13.

[13] O texto original é o seguinte: “Does God want us to suffer? What if the answer to that question is YES? See, I’m not sure that God particularly wants us to be happy. I think He wants us to be able to love and be loved. He wants us to grow up. I suggest to you that it is because God loves us that He makes us the gift of suffering. To put it another way, pain is God’s megaphone to rouse a deaf world.”. Chamar o sofrimento de presente ou dom divino é um exagero injustificável, em minha opinião.

[14] A passagem no original é: “You see, we are like blocks of stone, out of which the sculptor carves the forms of men. The blows of His chisel, which hurt us so much, are what make us perfect. Twice in [. . .] life I’ve been given the choice, as a boy and as a man. The boy chose safety; the man chooses suffering. The pain now is part of the happiness then. That’s the deal.”

[15] Pablo Neruda, Confieso que He Vivido (Confesso que Vivi), originalmente de 1974 (edição atual Editora Debolsillo, Buenos Aires, 2004)

[16] O Nunc Dimittis (Despede Agora), também conhecido como “O Cântico de Simeão”, se encontra no Novo Testamento, em Lucas 2:29-32. Cito o artigo “Nunc Dimittis”, na Wikipedia em Português para contextualizar: “De acordo com o Evangelho de Lucas […], Simeão era um homem justo e havia recebido a promessa do Espírito Santo de que não morreria até ver o Salvador. Tendo os pais de Jesus trazido o menino ao Templo de Jerusalém para cumprir o preceito da lei judaica referente a consagração do primogênito (algo em torno de 40 dias após o nascimento, que não se confunde com a cerimônia de circuncisão), Simeão estava lá e tomou Jesus em seus braços recitando o cântico que até hoje é usado pela Igreja na celebração das Completas.” Eis o texto dos versículos na tradução de Almeida RA: “Despede agora em paz o teu servo, Senhor, porque os meus olhos já viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos: e que é luz para revelação aos gentios e para glória do teu povo de Israel.” O projeto de vida de Simeão estava concluído: era ver aquele que Deus havia preparado para a salvação de judeus e gentios.

Em Salto, concluído (depois de quatro anos em que ficou engavetado), em 18 de Novembro de 2022. [Como dito, trata-se de trabalho que faz parte de um livro.]



Categories: Liberalism

2 replies

  1. Excelente texto Professor!
    Quando o livro será publicado?
    Abraço
    Wilson Lourenço

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    • Não tenho como prever, Wilson. Estou fazendo várias reformas no meu sítio, em função do casamento de minha filha, que será aqui, e isso tem me roubado preciosas horas que normalmente dedicaria à escrita. Um abraço. Agradeço o cumprimento e o interesse.

      EC.

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