Em Paz com a Natureza

[Breve relato de um momento, escrito em 3/12/2013, n’O Canto da Coruja. Escrever é um dom divino, que nos permite capturar, em tese para sempre, sensações e sentimentos que, não fora a escrita, provavelmente teriam se perdido para sempre. Não me lembrava de que havia me sentido assim há um pouco mais de dois anos. Encontrei o arquivo no disco, li, e tive essa sensação e esse sentimento difícil de definir que é tentar recapturar o que, num determinado momento, fugaz, eu senti. EC 4/2/2016 – 4h da manhã, sentado na minha poltrona, a Paloma dormindo, o ar condicionado ligado no quarto, por causa do calor que persiste, apesar da madrugada.]

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Sensação gostosa de paz e de que faço parte da natureza… Sentado na varanda de trás de nossa casa no sítio, protegido do sol pela sombra dos flamboyants, os passarinhos e demais animais parecem me considerar parte do cenário.

Dois beija-flores fazem acrobacias no ar para simplesmente beijar uma flor. Outro casal de passarinhos, não sei dizer quais são, ciscam até bem perto dos meus pés, sem nenhum receio de que eu lhes faça mal. Nossos recém-adquiridos galináceos já perderam o medo inicial de mim. No primeiro dia fui lhes levar uma vasilha com água e eles se esparramaram, assustados. Há pouco fiz a mesma coisa e eles não se moveram um pé. A galinha carijó parece que procura um lugar para fazer ninho. A galinha ruiva é cortejada pelo galo com os seus arrasta-asas. As Angola vivem uma vida à parte: ignoram as galinhas que não são de sua — como direi? — etnia. Vivem sós, uma com a outra, ou melhor, um com a outra, uma com o outro. Meu casal de corujas favorito parece estar chocando seus ovinhos na cumeeira da casa. Não se assustam mais quando vou olha-los. E gostei que eles tenham se sentido à vontade para fazer seu ninho num espaço tão doméstico. Ouço um arrulho que parece de pomba — mas não tenho visto pombas por aqui. Pode ser que sejam rolinhas. Mas já vi — em outros tempos — papagaios, tucanos… A tribo dos anus-brancos, também chamados de quero-queros, é freguês.

Temos hoje dois cachorros de cor caramelada, e o caseiro tem uma cachorra preta, com dois filhotinhos. Todos eles já viraram meus amigos, fazem questão de lamber a minha mão.

Por isso tudo me sinto um com a natureza, feliz, em paz com o mundo. Minha mulher e minhas filhas poderiam estar aqui – estão celebrando os sucessos de um semestre que ainda não terminou de todo. Notas excelentes da Priscilla, aprovação da Bianca na primeira fase da UNESP, dever cumprido pela Paloma no seu trabalho no Porto. Sábado à noite será o jantar de Natal do colégio.

Agora, o sol ameaça se pôr, bem na frente dos meus olhos. Ainda está meio alto — mas ele é como medidor de gasolina no carro: quando o tanque está apenas com um quarto de gasolina, o indicador às vezes se mantém perto da metade, mas a partir daí anda bem mais depressa. Quando contemplo os céus… o Sol, a Lua, as estrelas… Diante da magnificência de tudo isso, o que é o homem? No entanto, só o homem, de todos os seres vivos que habitam este universo, é capaz de contemplar essas maravilhas e se perguntar: de onde vieram, por que estão aqui, o que eu faço aqui, qual o meu papel nesse esquema de coisas? Só o homem ousa ter esperança (ainda que infundada) de que, ao lhe sobrevir a morte, ela não representará seu fim, mas apenas um outro começo. . . 

Esperança, do verbo esperançar, como dizia Paulo Freire, não do verbo esperar, num sentido mais forte. Lembro-me da lição de vida do meu orientador de doutorado, ao escrever uma carta de recomendação que me levou ao meu primeiro emprego, lá nos Estados Unidos: “hope for everything; expect nothing“. É isso: hoje estou esperançoso de que o mundo, no fundo, seja esse lugar gostoso que ele parece ser aqui.

Isso é o que, em outro lugar, chamei de fé: esperança misturada com desejo, não convicção misturada com certeza.

Em Salto, 2 de Dezembro de 2013; pequenas revisões em Salto, 4 de Fevereiro de 2016.



Categories: Autobio, Autobiography, Writing

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