Digital Story Telling

Post transcrito de meu blog “Liberal Space” (http://liberal.space).

Hoje foi publicado meu terceiro artigo no Blog das Editoras Ática e Scipione, no endereço http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/o-contar-historias-na-era-digital-digital-storytelling/.

É sobre Digital Storytelling – uma arte que eu aprendi na University of Virginia, com meu caro amigo Glen Bull.

Transcrevo-o aqui também.

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1. Identidade, Memória e o Contar Histórias

Nossa identidade pessoal é definida por nossas memórias – e nossas memórias são a base das histórias que somos capazes de contar: sobre nós mesmos, sobre nossos pais e demais parentes, sobre nossos amores, sobre nossos amigos, sobre nosso trabalho, sobre a cidade, a região ou o país em que vivemos – enfim, sobre as experiências e os relacionamentos que temos, as ideias que pensamos, as emoções que sentimos, os sonhos que sonhamos, os projetos que criamos para tentar transformar nossos sonhos em realidade.

O título da autobiografia de Gabriel Garcia Márquez é Vivir para Contarla, uma expressão instigante, que ele explica: “Nossa vida não é aquela que de fato vivemos, mas, sim, aquela que lembramos, e como a lembramos, para poder contar sua história”.

Em resumo: nossa identidade é definida pelas histórias que somos capazes de contar, que, por sua vez, dependem de nossas memórias…

Tomemos a literatura.

Um romance é uma história, ou então um conjunto de histórias que se entrelaçam. Em princípio, é uma obra de ficção, que conta a história de personagens que não existem de fato. Na prática, porém, as histórias construídas em um romance partem das experiências vividas ou imaginadas pelo autor, e se misturam com suas memórias… O que imaginamos também se incorpora à nossa memória. Às vezes, especialmente em casos como os de Simone de Beauvoir e Graham Greene, a biografia e a ficção são tão entrelaçadas que é virtualmente impossível separar com certeza o que é fato e o que é imaginação. Assim, ao contar uma história supostamente sobre outras pessoas, o autor do romance está também contando a sua história…

Mario Vargas Llosa, nosso último Nobel da Literatura, tem um livro magnífico chamado La Verdad de las Mentiras, em que, ao analisar grandes romances da literatura mundial, procura mostrar que, muitas vezes, há mais verdade na ficção (que em princípio é, literalmente, uma mentira) do que no jornalismo e na história, propriamente ditos, que deveriam buscar a verdade, só a verdade, nada mais do que a verdade (o jornalismo, no presente; a história, no passado)…

Mas não é apenas nossa identidade pessoal que é definida pelas histórias que somos capazes de contar: nossa identidade cultural e mesmo étnica ou nacional também é definida pelas histórias que somos capazes de contar sobre as coisas que importam em nossa cultura, sobre os eventos e personagens que ajudaram a construir a nossa história.

Isabel Allende tem um belo livrinho sobre o Chile (Mí País Inventado) que não é propriamente história, porque é sobre o Chile em que a escritora viveu e que vive ainda em sua memória (ainda que o país existente hoje seja muito diferente)… O país descrito é um Chile único, porque é história vivida, história contada como ficção. Romances históricos, como os de Alexandre Dumas (principalmente o pai) e os de Michel Zévaco, também se inserem nessa área nebulosa em que fato e ficção, memória e imaginação, se entrelaçam. Vide, por exemplo, Os Três Mosqueteiros (de Dumas pai) e Os Pardaillan (de Zévaco).

Muitas vezes é difícil (alguns diriam impossível) desentranhar a história realmente vivida (wie sie eigentlich gewesen ist, como diziam os pais alemães da historiografia dita científica) da história contada… Historiadores marxistas e liberais brigam até hoje para contar histórias diferentes de uma mesma história vivida!

Aqui entra outro componente: a língua é parte essencial de nossa identidade cultural-étnica-nacional – e nossas histórias são sempre construídas na língua que adotamos como nossa… Autores nascidos em um país (como Ayn Rand, que nasceu na Rússia) escolhem contar suas história na língua do país adotado (os Estados Unidos, no caso dela).

Assim, nossa identidade, tanto no plano individual como no plano cultural, étnico, e nacional, está profundamente misturada com nossa capacidade de contar histórias.

2. O Contar Histórias e a Tecnologia Digital

Como registrei em meu primeiro artigo aqui [no blog das Editoras Ática e Scipione], por muito tempo o contar histórias foi uma atividade tipicamente oral: as histórias, reais ou inventadas, eram contadas de viva voz, de um para outro, em pequenos grupos.

Com o surgimento da escrita, apareceu, ao lado do contar histórias oral, o contar histórias escrito – e, com esse, sugiram tanto a história, propriamente dita, ou seja, relatos de eventos que se acredita terem de fato acontecido, como a literatura, ou seja, relatos de eventos imaginados (ficção).

Com o aparecimento da impressão de tipos móveis, por volta de 1455, tornou-se possível também o aparecimento eventual do jornalismo – que é um contar histórias correntes, da atualidade.

O século XX, porém, foi o século do audiovisual. A fotografia foi inventada antes, mas o cinema e a televisão são típicos do século XX. É verdade que o cinema começou mudo – mas continha pequenos textos e diálogos inseridos como legendas. Em meados do século XX surgiu o computador e, mais para o final do século multimídia: o audiovisual digital por excelência.

Assim, o contar histórias, no século XX, passou a ser não mais baseado exclusivamente na palavra, oral ou escrita (embora a palavra continue extremamente importante): as imagens passaram a ser ingredientes indispensáveis das nossas histórias — e agora nós não somente ouvimos e lemos histórias, mas assistimos à sua representação audiovisual. Apesar do fato de que a história, o jornalismo e a literatura estão, hoje, mais fortes do que nunca, não se concebe, hoje, uma história sem fotografias e documentários, um jornalismo exclusivamente impresso, ou uma ficção que não seja traduzível para um filme, uma mini-série, uma novela…

A onipresença, hoje, de câmeras digitais, embutidas até mesmo em pequenos telefones, fez de cada um de nós um contador de histórias digitais.

3. Comunicação e Expressão, História e Geografia, Estudos Sociais na Escola

Crianças adoram ouvir histórias. “Conta outra”, é o que sempre pedem… (Vide, nesse contexto, http://contaoutra.net, site que criei há tempo sobre este assunto). Mas elas gostam também de contar histórias (reais ou inventadas, ou uma mistura das duas coisas). E não resta dúvida de que adoram tecnologia. Assim, é evidente que as crianças gostam de histórias audiovisuais construídas e transmitidas com o auxílio da tecnologia: o sucesso da televisão está aí para comprovar isso. Desenhos animados são histórias em que os personagens são construídos pelos desenhistas e animadores. E as crianças são apaixonadas por eles.

Entretanto, se entrarmos numa sala de aula de língua portuguesa, em nossas escolas, provavelmente não veremos professores e alunos construindo histórias – nem mesmo as puramente textuais, quanto mais as que envolvem imagens e fazem uso da tecnologia. Na maioria das classes se estuda gramática… Como diz o Rubem Alves, explica-se o que é um dígrafo… Em outras se pede aos alunos que façam composições – que, além de puramente textuais, são em geral sobre temas que pouco têm que ver com sua realidade, com seus interesses, com sua vida… As crianças não são intrinsecamente motivadas a fazer as composições escolares porque essas composições não têm como objeto uma história que as crianças querem contar. O objeto da história, o mais das vezes, é dado pelo professor. É este o protagonista no ambiente… (Sobre o protagonismo juvenil no ambiente escolar, vide o meu segundo artigo aqui [isto é, no blog das Editoras Ática e Scipione]).

Aulas de geografia em geral começam falando do sistema solar, e aulas de história sobre o passado remoto (Mesopotâmia, Egito, Grécia, Roma, Idade Média) – coisas tão distantes, no espaço e no tempo, da realidade, dos interesses, da vida dos alunos que não é de admirar que boa parte deles deteste geografia e história.

4. Uso Criativo e Inovador da Tecnologia na Educação

Em todo lugar em que se discute o uso da tecnologia na educação o maior desafio que seus proponentes enfrentam não está na infraestrutura (existência de computadores e conectividade nas escolas), no acesso a essa tecnologia, nem mesmo na formação dos professores para manejá-la tecnicamente. O maior desafio está em fazer algo de criativo e inovador com a tecnologia que efetivamente ajude as crianças, os adolescentes e os jovens a aprender melhor e a ter uma vida melhor do que doutra forma teriam.

O essencial, disse Bill Gates no Global Leaders Forum da Microsoft de 2004, não é a tecnologia: é o que fazemos com ela. Traduzido para a educação, isso significa que o essencial não é aprender a usar a tecnologia, mas usar a tecnologia para aprender – e para viver melhor.

Durante muito tempo o contar histórias audiovisuais só pôde ser feito por profissionais com acesso à complexa e cara tecnologia do cinema e da televisão. Hoje, porém, com a popularização da câmera digital (até mesmo em um pequeno telefone celular) e com a existência de produtos relativamente simples e virtualmente sem custos para compor histórias (Windows Live Movie Maker, por exemplo), qualquer um pode construir uma história digital – pessoal ou não, verídica ou inventada – com extrema facilidade e grande poder de comunicação e mesmo persuasão.

Isso quer dizer que a tecnologia digital, hoje, pode ser aproveitada, de forma criativa e inovadora, para dar vida ao aprendizado de comunicação e expressão, geografia, história, estudos sociais. Todo mundo tem histórias a contar: sobre si mesmo, sobre seus parentes e amigos, sobre sua família, seus animais favoritos, sua comunidade, sua cidade, seu país, o país de seus antepassados… O aprendizado de temas relacionados à linguagem, à geografia e à história, aos estudos sociais pode assumir uma nova dimensão, tornando-se contextualizado na experiência de vida e nos interesses dos alunos. E, no processo, as crianças estarão desenvolvendo importantes competências e habilidades na área de comunicação e expressão.

E também se aprende muita filosofia e muita ciência procurando contar a sua história…

A Prefeitura de Paulínia tem o que é, talvez, a maior Escola de Cinema (Stop Motion) para alunos de uma rede municipal de ensino no Brasil (quiçá no mundo). Construída com o apoio da Lego Education (da Dinamarca) e da Zoom (representante exclusiva da Lego Zoom no Brasil), os alunos da cidade aprendem a construir animações usando cenários construídos com Lego e personagens representados por bonequinhos Lego. Assim se preparam para trabalhar (como desenhistas, animadores, roteiristas, diretores, etc.) no grande polo de cinema que a cidade está construindo. Vale a pena conferir. Veja no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=AR6l-Lm0sA4.

Ali na Escola de Cinema de Paulínia se une o útil ao prazeroso. Ali a tecnologia é usada como ferramenta e como brinquedo. É sobre isso que falarei em meu próximo artigo [no blog das Editoras Ática e Scipione].

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Em São Paulo, 4 de Abril de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016.



Categories: Literature, Movies, Story-Telling

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