Estou lendo (desde ontem, 22/3/2016) um livro verdadeiramente interessante: A. N. Wilson, God’s Funeral (W W Norton & Co, NY, 1999). O século 19 é o período em que se acredita que, intelectual e culturalmente, Deus foi a óbito (para usar a linguagem dos médicos). Wilson não só lhe faz a autópsia como analisa em detalhe a “causa mortis”, emite-lhe o certificado de óbito e, por fim, ainda lhe descreve o funeral
Incrível como alguns autores conseguem relatar o que se passou e continua a se passar com você, sem que jamais tenham acesso à sua história de vida.
Ayn Rand fez isso comigo em 1973 – e faz até hoje. Eu a leio e fico com aquela impressão de que ela me conhece extremamente bem, melhor, talvez, do que qualquer outra pessoa, e que ela está colocando, em linguagem cristalinamente clara e precisa, o que eu penso, o que eu sinto, o que eu desejo, o que eu considero verdadeiro, certo, belo e sublime — só que nunca havia conseguido formular de maneira tão clara e precisa.
A. N. Wilson fez isso comigo também ontem (como disse, comecei a ler seu livro ontem). Se não fosse o cansaço (levantei-me às 2h da manhã ontem), teria passado a noite lendo. Sua descrição da crise de consciência de Thomas Hardy e Leslie Stephen (pai de Virginia Wolff), pensadores do século 19, chega a ser comovente: a mim me deixou emocionado, “moved”… Sempre gostei de Stephen, que tem uma belíssima história do pensamento inglês no século 18, em dois volumes, que eu li em 1970-1971, mas nunca li muito de Hardy, além de Jude the Obscure e Tess of the d’Urbervilles (que se tornaram lindos filmes).
Adorei encontrar em Wilson alguém que coloca, com todas as letras, o fato de que a crise do século 19, a teologia liberal, o próprio existencialismo kierkegaardiano, etc., tudo isso tem como antecedente causal a verdadeira bomba filosófica lançada no século 18 por David Hume, meu santo padroeiro, um dos poucos filósofos de quem admiro a obra mas também gosto da pessoa: gostaria de, como Adam Smith, ter convivido pessoalmente com ele. Que privilégio teria sido, não só ter convivido com ele, mas ser seu melhor amigo, como o foi Adam Smith!
Eu disse isso em minha tese de doutorado em 1972: basicamente o mesmo que Wilson afirma sobre Hume em seu livro. O título da minha tese é David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought. Eu era bem menos preguiçoso então: a tese tem 615 folhas… Hoje, até eu tenho preguiça de lê-la…
Wilson também tem uma biografia de C S Lewis, que eu tenho em São Paulo. Vou relê-la, porque também gosto de Lewis.
Como a gente aprende lendo. Sempre defendi a aprendizagem ativa, interativa, colaborativa, significativa… A leitura não parece ser uma fonte de aprendizagem desse tipo — mas a aparência é enganosa. Combinando insights de Socrates e de Alfred Adler, eu diria que, na melhor pedagogia da pergunta, o livro (o bom livro, desnecessário frisar) desperta questões em nossa mente, nos faz cócegas nos miolos (como diria o Rubem Alves), nos incita a refletir, e, socraticamente, a lhe fazer, ao livro, novas perguntas… Sócrates criticou o livro por não ser interativo e, por conseguinte, não responder às perguntas que lhe fazemos. Mas aí está seu maior mérito, visto de ângulo construtivista. Não respondendo às nossas perguntas o livro nos obriga a procurar respondê-las nós mesmos, nos provoca a nos colocar em diálogo com nós mesmos, a criar conversas em que somos nossos principais interlocutores.
Gosto de conceito: conversar consigo mesmo. Refletir é isso: é dialogar consigo próprio, questionar e criticar a si mesmo (antes de criticar os outros), é tentar (popperianamente) refutar nossas próprias ideias, especialmente aquelas que nos são mais caras. . . Conversas comigo mesmo. Sempre pensei em escrever um livro com esse título — embora ele possa parecer “conceited”, “selfish”, “egoistical” (que alguns escrevem “egotistical”), o cúmulo da ensimesmação: com tanta gente pra conversar, pra que querer conversar consigo mesmo? Não é uma questão de ou uma coisa ou outra. As duas são importantes. O problema, na nossa conversa interminável com os amigos no Facebook, é que a gente pode se esquecer de arrumar tempo para uma conversinha a sós com nós mesmos, para pôr nossas próprias ideias em ordem, cada qual no seu lugar…
Ouvir-nos a alma e tentar alimenta-la e aquieta-la, por um tempo, ainda que breve… A alma é extremamente faminta por bons alimentos, extremamente inquieta à espera de um afago e um carinho. Se arrumarmos tempo para isso, os resultado serão extremamente positivos, eu garanto.
Em Salto, 23 de Março de 2016; revisto ainda aqui em Salto, um ano depois, em 23 de Março de 2017.
.
Categories: Autobio, Autobiography, Reflection, Reflexão
Leave a Reply