Linguagem: Estilo, Gramática, Retórica…

1. Introdução

Há vários anos, no fim da década de oitenta, minha filha mais nova estava no final do Ensino Fundamental e enfrentava seríssimos problemas com a Língua Portuguesa. Não gostava de ler, gostava menos ainda de estudar gramática, e eu fiquei quase convencido de que ela não iria conseguir concluir a oitava (e então última) série do Ensino Fundamental. Como eu sempre gostei de línguas, da materna e das estrangeiras, e tive facilidade para aprendê-las, resolvi chamar a mim a solução do problema. Já possuía várias gramáticas da língua portuguesa, desde as mais conservadoras e normativas, como a de Napoleão Mendes de Almeida, até as mais liberais e flexíveis. Eu era colega e amigo de Ataliba Teixeira de Castilho, do Instituto de Estudos da Linguagem, que é defensor de uma língua que muda e se transforma sob a pressão de seus usuários comuns (não, necessariamente, apenas de seus escritores mais cultos), e que defendia, em certa medida, a validade do Português popularmente falado, até mesmo o caipirês da região de Campinas e Piracicaba… (Pode ser que eu esteja interpretando mal algumas das coisas que ouvi e li do Ataliba, mas foi isso que ficou comigo como impressão de seus pontos de vista…).

Comprei, na época, mais algumas gramáticas e comecei a escrever um texto, que era, em parte, compilação do que eu encontrava e me fazia sentido nas gramáticas e, em parte, minha própria visão da natureza da linguagem e de sua função descritiva, prescritiva, performativa e comunicacional. O texto recebeu o pomposo nome de Elementos de Gramática da Língua Portuguesa (Sintaxe e Estilística) Exigidos ao Final do Ensino Fundamental. Para cada capítulo preparei exercícios e comecei a ter sessões diárias de estudo com a minha filha. Funcionou: ela passou, sem dependência em Português.

Mais tarde, quando trabalhava com a parte técnica e pedagógica de uma escola de informática, usei o texto para treinar os professores, quase todos eles bastante jovens e com um Português atroz que me feria os ouvidos… E o texto recebeu muitos elogios.

Daquela época em diante fiquei meio obcecado pelo assunto. Quando os meios de comunicação começaram a publicar Manuais de Estilo, comprei todos, até mesmo as segundas e terceiras edições.

Essa obsessão explica o meu interesse pelos tópicos abaixo.

2. Primeiro Momento

No dia de Natal (25/12/2017), às 11h47 (AM), escrevi aqui no Facebook (na forma em que o texto aparece, sem vários acentos e cedilhas):

“Daqui para frente vou simplificar minha escrita aqui no FB, eliminando todo acento que não seja ou não me pareça importante. Nos nomes dos membros da minha familia, vão ficar sem acentos Patricia, Julia, Everton, Fabio, etc. Continuo a colocar o til e o c cedilha. Mas talvez seja por pouco tempo.

No meu Blog, que extrapola, em audiencia, os circulo dos meus amigos, ainda vou tentar acentuar. Mas tambem acho que sera por pouco tempo.

Agradeço sugestoes de simplificação. Acho que simplificacao seria prefeitamente inteligivel nesta frase.”

(https://www.facebook.com/eduardo.chaves/posts/10155892247582141:35)

Recebi vários comentários, alguns concordantes, outros meio hesitantes. Um deles, escrito pela minha querida prima Denise Machado Leme me levou a continuar a discussão um pouco – mas, depois de um breve diálogo, ela parou de escrever sobre o assunto.

O primeiro comentário dela, incluindo o emoji, foi:

“Não sei não ”

Peguei a deixa e prossegui, dizendo:

“Cara Denise: Os que fazem a língua são os que a usam — para falar e para escrever.”

Eu continuei:

“Há pouco tempo, Denise, pq havia desuso do trema, do hífen, e de outros bagulhos linguísticos, os que se pretendem donos da língua, mas são apenas seus servos, defenestraram os bagulhos desusados. Antes, k, w, y foram trazidos para a língua por pressão dos mais simples que insistiam em chamar seus filhos de Kelly, William, Shirley… Antes, minha vocação era ser philosopho e estudar a philosophia…Hoje…”

A Denise retrucou, num texto cheio de emojis:

“Ahh Eduardo MAS eu gosto de arqueologia, arqueologia da música, das línguas, regras estruturadas, Velharias, contraponto, música com regras complexas que ninguém mais sabe usar 😂😂😂😂. Vc tem uma permissividade de poucos! Sua opção é resultado de conhecimento já a maioria que mal-escreve é ignorância mesmo 😂😂😂”.

Eu ainda escrevi mais um comentariozinho, dirigindo-me a uma outra interlocutora, Jo Carla Furtado, escritora, filha de uma grande amiga minha da juventude, que havia se manifestado transcrevendo a seguinte citação (sem indicar a origem):

“Gosto de sentir minha língua roçar a língua de Luís de Camões; Gosto de ser e de estar; E quero me dedicar a criar confusões de prosódias”.

Meu comentário foi:

“Camões, se vivesse hoje, não falaria nem escreveria como o fez… Tampouco Machado…”

O assunto basicamente parou por aí.

3. Segundo Momento

No último dia do ano (31/12/2017), às 8h47 (AM), transcrevi um artigo de Otávio Frias Filho, publicado na Folha de S. Paulo, com o título de “Mártires do Estilo”. O artigo pode ser lido em:

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/otavio-frias-filho/2017/12/1946855-martires-do-estilo.shtml

Prefaciei a transcrição com o seguinte comentário:

“Curioso que Frias escreva um artigo sobre esse tema exatamente hoje… Eu comprei, essa semana que finda hoje, o terceiro livro que ele discute (que, segundo a Amazon, me será entregue sem falta hoje, domingo), o livro de Steven Pinker [Sense of Style: The Thinking Person’s Guide in the 21st Century], e tenha, há quase cinco décadas, o livro que inspirou o segundo livro que ele discute (E. B. White & William Strunk Jr)…”

Numa rara falha, a Amazon não me entregou o livro no domingo: entregou apenas ontem, quinta-feira (4/1/2018), quatro dias depois. Comecei a lê-lo hoje de madrugada.

Aproveito para transcrever os três parágrafos em que Otávio Frias Filho comenta especificamente o livro de Pinker, que recebeu, em Português, um título bastante diferente do título original, fornecido atrás:

“O terceiro livro é Guia de Escrita – Como Conceber um Texto com Clareza, Precisão e Elegância (Contexto), do psicólogo e linguista canadense Steven Pinker, publicado em português no ano passado. O autor se propõe a corrigir os automatismos dos manuais, iluminando, a partir de pesquisas sobre cognição e linguagem, os mecanismos pelos quais tantas pessoas escrevem de forma confusa, inexata, ilógica, redundante e ambígua.

De fato, se um texto que não é técnico se mostra incompreensível, a culpa cabe mais às limitações do autor que às do leitor. Pinker escreve com vivacidade e eloquência, e sua argumentação é muitas vezes fascinante, mas também algo exaustiva. Recomendam-se as passagens em que ele critica a escrita empolada e vazia dos departamentos de humanidades, por ele chamada de pós-moderna.

As revelações da psicologia evolutiva, que notabilizaram o autor em seus estudos sobre cognição e violência, rendem resultados menos empolgantes neste trabalho sobre a escrita corrente. E Pinker, que começou criticando os manuais, na prática concorda bastante com eles, encerrando o livro com um capítulo dedicado a uma série de situações corriqueiras no estilo assim, sim / assim, não.”

Por fim, cito mais três parágrafos do artigo de Frias, com os quais ele encerra sua contribuição:

“Todos os esforços em favor da simplicidade despojada são bem-vindos num país como o nosso, onde ainda se cultiva uma escrita ornamental, feita mais para iludir do que expor e esclarecer. Não se trata apenas da prolixidade afetada própria do Judiciário ou da verborragia evasiva no ambiente parlamentar.

Bulas, manuais de uso, documentos oficiais, instruções ao consumidor etc. são redigidos de maneira nebulosa, eufemística, quando não abstrusa, no hábito deliberado de evitar compromissos e eludir responsabilidades. Comunidades inteiras (urbanistas, pedagogos e psicólogos, por exemplo) tendem a escrever num dialeto infestado de ideias vagas e substantivos abstratos que traduzem pouco sentido objetivo.

Os autores desses livros coincidem ao enaltecer dois aspectos, além do despojamento. Um deles é a “mot juste” (palavra exata), na expressão atribuída a Flaubert, chamado por ironia de “mártir do estilo”. É aquele termo que, pertencendo ao repertório comum, expressa com máxima precisão o que designa. O outro seria algo como sinceridade, não no sentido de ser veraz, embora isso seja exigência preliminar na escrita não literária, mas de ter algo de novo, útil ou surpreendente a dizer.”

4. Terceiro Momento

Estou com o livro de Pinker em mãos, e já li uns pedaços. Gostei de algo que li no Prologue (uma espécie de Introdução) e vou transcrever uma passagem enorme a seguir, em Inglês (por falta de tempo e de disposição para traduzir – embora esse seja um dos meus métiers: sou, por concurso público, tradutor público juramentado e intérprete comercial de Inglês/Português). Nessa passagem, que vem depois de ele descrever várias razões que tem para gostar de Manuais de Estilo”, ele descreve sua última razão e passa a discutir uma série de questões extremamente importantes, com as quais eu concordo totalmente (e que vão na linha do que coloquei no “Primeiro Momento” deste artigo – razão pela qual eu as transcrevo com negrito acrescentado):

“I like to read style manuals for another reason, the one that sends botanists to the garden and chemists to the kitchen: it’s a practical application of our science. I am a psycholinguist and a cognitive scientist, and what is style, after all, but the effective use of words to engage the human mind? It’s all the more captivating to someone who seeks to explain these fields to a wide readership. I think about how language works so that I can best explain how language works.

But my professional acquaintance with language has led me to read the traditional manuals with a growing sense of unease. Strunk and White, for all their intuitive feel for style, had a tenuous grasp of grammar. They misdefined terms such as phrase, participle, and relative clause, and in steering their readers away from passive verbs and toward active transitive ones they botched their examples of both. There were a great number of dead leaves lying on the ground, for instance, is not in the passive voice, nor does The cock’s crow came with dawn contain a transitive verb. Lacking the tools to analyze language, they often struggled when turning their intuitions into advice, vainly appealing to the writer’s ‘ear’. And they did not seem to realize that some of the advice contradicted itself: ‘Many a tame sentence . . . can be made lively and emphatic by substituting a transitive in the active voice’ uses the passive voice to warn against the passive voice. George Orwell, in his vaunted ‘Politics and the English Language’, fell into the same trap when, without irony, he derided prose in which ‘the passive voice is wherever possible used in preference to the active.’

Self-contradiction aside, we now know that telling writers to avoid the passive is bad advice. Linguistic research has shown that the passive construction has a number of indispensable functions because of the way it engages a reader’s attention and memory. A skilled writer should know what those functions are and push back against copy editors who, under the influence of grammatically naïve style guides, blue-pencil every passive construction they spot into an active one.

Style manuals that are innocent of linguistics also are crippled in dealing with the aspect of writing that evokes the most emotion: correct and incorrect usage. Many style manuals treat traditional rules of usage the way fundamentalists treat the Ten Commandments: as unerring laws chiseled in sapphire for mortals to obey or risk eternal damnation. But skeptics and freethinkers who probe the history of these rules have found that they belong to an oral tradition of folklore and myth. For many reasons, manuals that are credulous about the inerrancy of the traditional rules don’t serve writers well. Although some of the rules can make prose better, many of them make it worse, and writers are better off flouting them. The rules often mash together issues of grammatical correctness, logical coherence, formal style, and standard dialect, but a skilled writer needs to keep them straight. And the orthodox stylebooks are ill equipped to deal with an inescapable fact about language: it changes over time. Language is not a protocol legislated by an authority but rather a wiki that pools the contributions of millions of writers and speakers, who ceaselessly bend the language to their needs and who inexorably age, die, and get replaced by their children, who adapt the language in their turn.

Yet the authors of the classic manuals wrote as if the language they grew up with were immortal, and failed to cultivate an ear for ongoing change. Strunk and White, writing in the early and middle decades of the twentieth century, condemned then-new verbs like personalize, finalize, host, chair, and debut, and warned writers never to use fix for ‘repair’ or claim for ‘declare.’ Worse, they justified their peeves with cockamamie rationalizations. The verb contact, they argued, is ‘vague and self-important. Do not contact people; get in touch with them, look them up, phone them, find them, or meet them.’ But of course the vagueness of to contact is exactly why it caught on: sometimes a writer doesn’t need to know how one person will get in touch with another, as long as he does so. . . .”

5. Conclusão

Atrás usei dois termos: “obsessão” e “obcecado”. Confesso que fiquei em dúvida sobre a grafia e fui procurar auxílio na Internet.

Achei um artigo na Coluna “Sobre Palavras”, da VEJA, que procura esclarecer. Termino este artigo, cheio de transcrições longas, com mais uma:

Coluna “Sobre Palavras”, de Sérgio Rodrigues, na VEJA;

Pergunta Marcio Castro Brandão:

“Parabenizo a coluna por transmitir conhecimento sobre a língua portuguesa de uma maneira bastante agradável. A propósito, uma inquietação minha é saber por que a palavra obcecado, que deriva de obsessão, é escrita com c. Obrigado.”

Responde Sérgio Rodrigues:

“A diferença de grafia observada por Marcio tem uma explicação simples: obcecado não tem relação etimológica com obsessão. Trata-se de duas famílias diferentes de palavras, com algumas semelhanças de sentido que, aliadas à semelhança da forma, tornam comum a confusão.

O substantivo ao qual se liga o adjetivo obcecado é obcecação, enquanto o adjetivo que corresponde ao substantivo obsessão é obsesso (ou, em determinados casos, obsessivo). Ocorre que tanto obcecação quanto obsesso são vocábulos pouco empregados. Na prática, obcecado e obsessão acabam de fato formando um par – o que não está propriamente correto, mas tampouco traz prejuízo para a comunicação, na maioria dos casos.

Isso se dá porque obcecação, do latim obcaecationis (“tornar cego, obscurecer a razão”), e obsessão, do latim obsessionis (“ação de sitiar, assédio”), convergem na linguagem comum, partindo de pontos diferentes, para o mesmo foco semântico: o da ideia fixa. Nas palavras do Houaiss, obcecação é “obscurecimento da razão; insistência numa determinada ideia; pertinácia excessiva”, e obsessão, “apego exagerado a um sentimento ou a uma ideia desarrazoada; motivação irresistível para realizar um ato irracional; compulsão”. Não se trata de identidade absoluta, mas as diferenças são sutis.

Se as semelhanças de sentido as tornaram intercambiáveis na maioria dos contextos presentes na linguagem comum, é importante observar que as palavras obcecação e obsessão não se confundem em tudo. Quando se exige maior precisão técnica, elas se distanciam de modo categórico: a primeira tem a acepção médica de cegueira parcial; a segunda, a velha acepção religiosa de assédio ao espírito exercido por demônios e a moderna acepção psicopatológica de neurose obsessivo-compulsiva. Nesses casos seria um erro grave estabelecer qualquer relação, mesmo informal, entre o substantivo obsessão e o adjetivo obcecado.

Por que obsessão e obcecado têm grafias diferentes?

Em Cortland, 5 de Janeiro de 2018



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